sexta-feira, 13 de maio de 2011

Sobre ritmos, pausas e o ator consciente do que faz

Seguindo um pensamento sobre o trabalho do ator num texto como o do Pinter, em que a lógica narrativa clássica é trocada por uma lógica muito mais complexa – e às vezes aparentemente ilógica (apenas aparentemente).

Tenho me deparado agora com uma questão que sempre me deixou muito curioso, a do ritmo na fala do ator. No drama realista (como a maior parte dos filmes em que trabalhei) o ritmo das falas é quase esquecido, ninguém pensa nele – tudo se adequa à lógica do real, da aparência da realidade, e só haverá um ritmo trabalhado, preciso, se os personagens tiverem esse ímpeto interno. Já na comédia, o ritmo é imprescindível como ferramenta do ator e do diretor. Sem um bom ritmo nenhuma piada se sustenta. Mas embora Pinter não seja exatamente comédia (é engraçadíssimo diversas vezes, mas por motivos sombrios), tenho percebido a cada dia o quanto essa noção é importante pro jogo cênico criado por ele, o quanto torna a cena mais redonda, completa, gostosa de brincar. Não só o ritmo entre as falas, réplicas e tréplicas entre 2 ou 3 atores, mas também os ritmos internos de falas mais longas e solilóquios. Pinter trabalha muito, nos solilóquios, com uma pontuação muito precisa, e com um fluxo de imagens vertiginoso, muito parecido com as correntes de pensamento de Joyce, Proust, Faulkner. Só que nas correntes de pensamento (streams of consciousness) desses caras a corrente é interna, a consciência do personagem correndo solta, os pensamentos dele - o famigerado “monólogo interior”. Nesse texto do Pinter (como sempre nas peças dele aliás), tudo o que é dito será dito visando um objetivo, geralmente o de prevalecer sobre alguém de alguma maneira. Então esses solilóquios têm um formato de corrente de pensamento porém não uma corrente interna, subjetiva, mas sim uma torrente, pra fora, objetiva e direcionada a um fim – sem por isso deixar de ser totalmente subjetiva na sua criação de imagens. Um pouco como se o personagem começasse a falar sem parar tudo o que viesse na cabeça, de uma vomitada só, de maneira confusa e subjetiva, mas conscientemente fazendo isso para demonstrar o quanto é especial, mais especial do que o outro, aquele fraco...
E é inevitável que essa pontuação frenética, que gera uma experiência singular na leitura destes textos (basta lembrar do sufocante e maravilhoso final do Ulysses, o longo monólogo interior de Molly Bloom, sem um ponto sequer), suponha também uma forma singular na fala do ator. Por isso a busca por um ritmo vertiginoso (palavra muito diferente de “rápido”, “acelerado”, etc – como na música) nestes solilóquios, numa forma de não deixar pausas entre as frases, para que não haja espaço para o outro entrar, numa opressão verborrágica.

Por outro lado, há também as famosas pausas pinterescas. Os textos dele são salpicados de pausas, e elas evidentemente não estão ali para criar tensão dramática, como numa lógica realista. Depois de diversas leituras do texto, começamos a sentir que essas pausas estabelecem quebras de unidade dentro das situações estabelecidas. Como se a cada pausa houvesse uma potencialização para um novo ataque. Começamos a chamar esses “momentos entre-pausas” de rounds, e acabamos criando, a partir de uma sugestão da Cristina que se empolgou com essa lógica, exercícios para tentar dar conta das conseqüências de cada pausa no desenrolar da cena. E as conseqüências são interessantíssimas, pois realmente parece que a junção das pausas e do ritmo vertiginoso potencializa absurdamente o jogo cênico.

Bom, tudo muito bonito, muito legal, muito empolgado com essa pesquisa, PORÉM, é claro, ao tomar esse rumo com os atores, num primeiro momento, toda a construção de imagens do próprio texto se perde. Num primeiro momento, parece que eles esquecem do que estão falando, e só reproduzem aquelas palavras naquele ritmo. Inevitável, pois é uma busca até certo ponto formalista, a de um ritmo. Será? O mais difícil, tenho encontrado, tanto para os atores entenderem (entender organicamente, compreender, tornar parte do fluxo) quanto pra mim explicar, facilitar, dirigir, é a idéia de que esse ritmo é na verdade orgânico. Não é um formalismo, é orgânico, pois participa desse “objetivo” do personagem, o de oprimir o outro através não só do que ele diz, mas também do como diz: linguagem, imagens e ritmo. Isso me parece absolutamente imprescindível de ser compreendido pelo ator, pois senão o que acontece, se ele simplesmente “obedecer” a essa direção, é que ele vai se tornar um robô que reproduz aquele texto (já de por si bastante ilógico, aparentemente, mas não pode sê-lo para o ator) de uma forma ritmada que vai soar bonita, poética, mas totalmente desprovida de sentido.
Por isso a dúvida do melhor momento para se trazer essa questão para os atores. Se ela é trazida logo no início do processo, pode “formalizar” totalmente a atuação deles, que ficam mais preocupados com um ritmo imposto por mim do que com o que realmente estão dizendo. Se chega muito no final, já estarão acostumados a um formato mais desritmado, provavelmente vai ser muito difícil se adequar e o ritmo vai acabar se perdendo – o realismo de ritmo irregular vai prevalecer. Por isso tenho tentado que faça parte do processo de compreensão do texto, da situação. É o que estou tentando fazer, mas essas matemáticas são tão loucas quando falamos de processo artístico. Segue o instinto, filho, e vamos nessa...

Por outro lado, o risco, nessa forma de pensar essas opções formais como formas do personagem atingir seu objetivo, é o de tentar reduzir o texto do Pinter à lógica realista. Não o é, e por mais que se tente nunca o será. O que talvez seja preciso que fique claro para os atores é que não é exatamente uma decisão dos personagens, individualmente conscientes, esse ritmo – eles não decidem “ah, vou falar desse jeito” - mas sim a forma como eles se colocam no jogo. É a lógica do jogo cênico em si, pra além da logicazinha interna realista. Uma das formas deles tentarem ganhar o jogo – dentro e fora da lógica interna aos personagens. Assim, personagem e ator se confundem um pouco – o que parece se encaixar perfeitamente no texto do Pinter, onde ao mesmo tempo em que os personagens seguem uma lógica interna draconiana, o tempo todo há a impressão de que a qualquer momento um deles vai dar uma piscadinha para a platéia, revelando que tudo aquilo é um jogo, uma peça.

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