quarta-feira, 8 de junho de 2011

Sobre a "presentificação"


Eu andava angustiado pela minha vontade (e inevitável dificuldade) de trabalhar, num texto em que os personagens estão sempre falando do passado, a ideia de que eles "presentificam" esses relatos do passado, ou seja, nunca falam realmente do passado, mas estão sempre criando essas imagens do passado para atingir algum objetivo - consciente ou inconsciente - aqui, no presente.

Essa semana a angústia finalmente deu frutos. O exercício mais simples, quase estúpido de tão simples, me veio no meio de um ensaio. Porque eu tinha passado a semana pensando na diferença, claríssima, entre os tons com que dizemos as coisas quando estamos lembrando e quando estamos afirmando. Quando lembramos, parece que a palavra vem lá do fundo da nuca, parece que nossos olhos estão virados para dentro, para as lembranças, para o passado. Já quando estamos afirmando, ou melhor ainda, inventando, nosso discurso se projeta pra frente, os olhos pra frente, ligados, conectados com o agora e não com o antes.

Por mais que tente explicar isso a um ator, não é fácil, apenas entendendo intelectualmente, executar o procedimento de "presentificar" solilóquios enormes que tratam constantemente do passado. Os atores escutavam minha ideia, entendiam, gostavam, se empolgavam, mas na hora de fazer a cena nada. O que fazer? Bom, a ideia mais simples e óbvia é comumente a que mais demora para aparecer: pedi para os atores reescreverem TODOS os seus solilóquios que falam do passado, alterando o tempo verbal do texto, do passado característico da lembrança narrada ao presente característico de algo criado agora. Estudar o texto assim, perceber na pele a diferença, adaptar essa sensação para o texto original. A mudança é clara e linda:

TEXTO ORIGINAL:
Aí entrou alguém pra te chamar, uma moça, uma amiga. Ela sentou no sofá com você, vocês conversaram e riram, sentadas juntas, eu me acomodei ainda mais baixo para mirar as duas, as coxas das duas, encostando e raspando uma na outra, você consciente, ela inconsciente. Mas aí uma multidão de homens me cercou, me exigiram minha opinião sobre a morte, ou sobre a China, ou sobre o que fosse, e eles não me largavam e estavam todos curvados em cima de mim, com os hálitos fedorentos os dentes quebrados os cabelos nos narizes e a China e a morte e os rabos deles nos braços da minha poltrona e eu fui forçado a me levantar e abrir caminho no meio deles, todos me seguindo com ferocidade (...)

TEXTO "PRESENTIFICADO":
Aí entra alguém pra te chamar, uma moça, uma amiga. Ela senta no sofá com você, vocês conversam e riem, sentadas juntas, eu me acomodo ainda mais baixo para mirar as duas, as coxas das duas, encostando e raspando uma na outra, você consciente, ela inconsciente. Mas aí uma multidão de homens me cerca, me exigem minha opinião sobre a morte, ou sobre a China, ou sobre o que fosse, e eles não me largam e estão todos curvados em cima de mim, com os hálitos fedorentos os dentes quebrados os cabelos nos narizes e a China e a morte e os rabos deles nos braços da minha poltrona e eu sou forçado a me levantar e abrir caminho no meio deles, todos me seguindo com ferocidade (...)

Por mais simples que seja, essa operação coloca a questão para o ator num patamar totalmente diferente. E parece perfeito como exercício num texto onde o passado é usado o tempo inteiro como arma, como forma de alcançar algum objetivo no presente, e em que, inclusive, ele é inventado o tempo todo, em que uma personagem diz "tem coisas que eu me lembro que não aconteceram, mas como eu me lembro elas passam a ter acontecido"...