terça-feira, 31 de maio de 2011

Sobre a criação de imagens

No texto do Pinter há momentos, recorrentes, em que um dos personagens “ataca” os outros com falas enormes, que convencionamos chamar solilóquios (embora não sejam falas para eles mesmos, mas sim direcionadas para os outros). Como são grandes e possuem uma lógica interna, se tornam “estudáveis” independentemente.

Nesses solilóquios, geralmente, uma quantidade abissal de imagens é evocada, num ritmo vertiginoso. Dois exemplos diferentes abaixo:

DEELEY:
(…) Mas aí uma multidão de homens me cercou, me exigiram minha opinião sobre a morte, ou sobre a China, ou sobre o que fosse, e eles não me largavam e estavam todos curvados em cima de mim, com os hálitos fedorentos os dentes quebrados os cabelos nos narizes e a China e a morte e os rabos deles nos braços da minha poltrona e eu fui forçado a me levantar e abrir caminho no meio deles, todos me seguindo com ferocidade, como se eu fosse o motivo de toda a discussão, olhando pra trás através da fumaça, correndo até a mesa com toalha de linóleo para pegar mais um garrafa de cerveja, olhando pra trás através da fumaça, vendo de relance duas garotas no sofá, uma delas você, as cabeças juntas, cochichando, já não conseguindo ver mais nada, já não conseguindo ver meias ou coxas, e aí vocês tinham ido embora. Voltei pra perto do sofá. Não tinha ninguém nele. Fiquei contemplando no sofá as marcas de quatro nádegas. Duas delas eram tuas.


KATE:
(…) Me lembro de você estendida, morta. Você não sabia que eu estava olhando. Me curvei sobre você. Seu rosto estava sujo. Você estava estendida, morta, com a cara toda rabiscada de terra, várias frases sérias, mas a terra ainda estava úmida, escorrendo pelo seu rosto, descendo até o pescoço. Seus lençóis estavam imaculados. Fiquei contente. Me deixaria triste ver o seu cadáver em cima de lençóis sujos. Teria sido deselegante. Quero dizer, no que me dizia respeito. No que dizia respeito ao meu quarto. Afinal você estava morta no meu quarto. Quando você acordou meus olhos estavam sobre você, fixos em você. Você tentou aplicar o meu truquinho, um dos meus truques que você tinha copiado, meu sorrizinho lento, meu sorrizinho tímido e lento, meu jeito de inclinar a cabeça de lado, de deixar os olhos semicerrados, esse jeitinho que nós duas conhecíamos tão bem, mas não funcionou, o sorriso quebrou o barro nos cantos da sua boca e endureceu. Você endureceu sorrindo.


No estudo desses solilóquios algumas questões aparecem que são bem interessantes para se pensar a direção de atores numa dramaturgia como a do Pinter:

- Compreensão da lógica do texto
Não é possível compreender esse texto numa lógica realista. O solilóquio de Kate, por exemplo, não pode ser entendido literalmente, evidentemente (“você estava morta / quando você acordou” etc), tem um sentido mais poético, talvez o de relatar o final de um amor. Já o de Deeley é um relato de uma situação que provavelmente nunca aconteceu, talvez a criação de uma história de suposta intimidade, para colocar a mulher (neste momento vítima, em outros algoz) numa situação de desconforto. Se tentarmos enfrentar estes textos numa lógica realista, a própria lógica começa a ruir em pouco tempo. Então há que se tentar entender essa poética, essa invenção de história. Ainda assim, defendo que, pelo menos na dramaturgia do Pinter, existe uma lógica humana, interna a cada “personagem” (nome gasto e que não dá conta da questão, talvez melhor “potência”, “vetor de força”, enfim). Essa lógica interna é a que faz com que faça todo o sentido esse homem, no segundo ato, criar essa história estapafúrdia sobre uma noite numa festa – pois está reagindo às situações do primeiro ato. Essa lógica é tão clara no texto quanto desconcertante, pois num primeiro momento o texto do Pinter parece nos pedir uma lógica de causa e consequencia, mesmo sendo tão poético e pouco realista. Aos poucos estamos entendendo que lógica de causa e consequencia não é exatamente o caso, não dá conta, é pouco potente pra entender o jogo cênico. Mais do que causa e consequencia, o que parece haver é uma acumulação, numa espiral em que, na realidade, cada “vetor” parece jogar o mesmo jogo até o final da peça, em que aquela mesma potência do início está agora no seu volume máximo e, por isso mesmo, explode (ou afunda, dependendo do ponto de vista). Esses “solilóquios” seriam então momentos pontuais nessa espiral, momentos em que um dos vetores acumulou potência e precisa liberá-la de algum modo. Esse entendimento não-realista é essencial para o ator, senão a lógica realista vai levá-lo a decisões que são tiros no pé: nos dois exemplos de texto, se no do homem o ator decidir que a história é verdadeira, isso despotencializaria totalmente a cena, pois é bem diferente inventar uma história sobre alguém descaradamente do que lembrar a ela algo que realmente aconteceu – uma lida com o presente, outra com o passado. Já no da mulher, imagine dizer esse texto tentando dar conta de um assassinato... nada mais longe do que está realmente acontecendo.

- Trabalho de criação de imagens
Me parece essencial fazer um trabalho, nestes textos extremamente evocadores de imagens, fazer um trabalho individual com cada ator de criação das imagens. Esse é um trabalho chato, difícil e pouco usado talvez, mas eu acredito muito nele. Consiste, simplesmente, em estudar o texto imaginando uma imagem para cada pequena unidade do texto. Hoje no ensaio dei um exemplo que funciona para mim:
ANNA: (…) nós éramos jovens é claro, mas que resistência, e trabalhar de manhã, e depois um concerto, ou a ópera, ou o balé, naquela noite, você não esqueceu? e depois no andar de cima do ônibus atravessando a Kensington High Street, e os motoristas dos ônibus, e depois correndo pra procurar os fósforos e acender o aquecimento e eu acho que ovos mexidos (...)
Nesse trecho por exemplo, Anna está evocando uma profusão de imagens de um passado em que ela e Kate foram muito amigas e vivam juntas pra lá e pra cá em Londres. Se eu me proponho a fazer o trabalho de imagens com esse texto, pegando por exemplo o pedacinho “e os motoristas dos ônibus” - pedaço que pode passar quase desapercebido numa abordagem do texto como fluxo, sem estudar pedaço-a-pedaço -, eu começo a imaginar um ônibus, um específico, dentro dele um motorista específico, um engraçado, figura, que parece meu tio, com um bigodão, e ele conta uma piada, e a Kate está rindo dessa piada, e nessa imagem “os motoristas dos ônubus” se torna ao mesmo tempo aquele motorista, aquela piada, aquela noite, aquele sorriso, e ao mesmo tempo o fato de que eu e Kate compartilhamos um gosto por conversar com os motoristas dos ônibus, é algo que temos na nossa história pessoal. Claro que, ao dizer “os motoristas dos ônibus”, nada disso precisa estar presente, nem nunca vai estar. O trabalho é de criar o iceberg por baixo da ponta: agora eu sei porque eu estou dizendo “os motoristas dos ônibus”, sei internamente, sei do que estou falando – a coisa mais triste é ver um ator em cena que não sabe o que está dizendo. Mas até aqui nenhuma novidade, esse trabalho de imagens é antigo e já foi muito pensado e usado, e pode perfeitamente ser usado num texto absolutamente realista. Só que eu tenho cada vez mais sentido que ele é ainda mais eficiente num texto não-realista, pois se este exemplo que eu dei é bastante realista, o que dizer do texto da Kate, “você estava morta”? Quando se inventa uma história, o que se faz nada mais é do que exatamente esse trabalho, de criação de imagens. Então o trabalho serve especialmente quando essas imagens são evocadas. Quando Kate diz que a amiga estava morta, precisa de alguma imagem dela morta, e a questão passa a ser qual imagem será essa. Se apropriar do texto, fazer dele uma comunicação do ator, ajudar o ator a comunicar e não apenas reproduzir palavras. As improvisações ajudam exatamente nisso, pois ao improvisar o ator precisa inventar imagens o tempo todo, criar situação e imagens para seguir no jogo (isso nas boas improvisações, nas comprometidas, não as racionais e estéreis). Mas em textos como o do Pinter, muitas vezes é inviável abordar um soliloquio através de improvisação – pois é muito errático, ilógico, cheio de nuances. Então o trabalho de imagens se torna uma ferramenta essencial para o ator, pois é como se ele se permitisse “improvisar” cada pedacinho do texto em algum momento.

- Ritmo
Como já disse em post anterior, acho essencial o ritmo no trabalho de direção de atores, principalmente numa proposta não realista – se no realismo o ritmo ideal é errático, pois assim é como falamos no dia a dia, de forma desritmada, aqui o ritmo se torna parte essencial da própria lógica do texto. Se formos aos exemplos acima, tanto o solilóquio de Deeley quanto o de Anna apresentam um evidente ritmo vertiginoso de imagens: “...com os hálitos fedorentos os dentes quebrados os cabelos nos narizes e a China e a morte e os rabos deles nos braços da minha poltrona e eu fui forçado a me levantar e abrir caminho no meio deles”. Nenhuma vírgula, nenhum ponto. Não é possível passar por cima da pontuação num Pinter, assim como não é possível passar por cima das pausas. Elas fazem parte intrínseca da lógica interna ao texto, e ignorá-las significa fazer uma releitura, uma recriação do texto – nada contra, só não é o que estou me propondo aqui. Porém, se esse trabalho de ritmo é importante, ao mesmo tempo, como também já disse em post anterior, pode aprisionar totalmente os atores, que num primeiro momento sempre vão “mecanizar” suas falas ao tentar dar a elas um ritmo específico. A criação das imagens, espero, pode ajudar muito nesse caso.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Pinter e Cassavetes



Essa semana entramos numa parte do texto muito difícil, em que Anna e Deeley começam a competir por Kate cantando antigas canções, criando uma situação ao mesmo tempo constrangedora e engraçada. Pelo menos essa é a nossa concepção da cena, pois o Pinter só diz "Deeley (cantando)" e "Anna (cantando)", seguido da letra de uma música antiga. Mas analisando o texto e seguindo a mesma lógica de que eles estão sempre se bicando, competindo de formas diferentes pela atenção de Kate, chegamos a esse desenho, de que eles estão competindo pra ver quem lembra das canções antigas que Kate adora. Nosso desafio é criar na cena esse constrangimento: de repente, do nada, uma das pessoas na sala começa a cantar uma música, a outra interrompe com outra música, e os dois começam a competir pra ver quem canta a música que mais vai agradar à terceira... patético, constrangedor, e absolutamente humano. Impossível não lembrar dessa cena de FACES, de John Cassavetes, filme que já vi dezenas de vezes, literalmente - a ponto de me perguntar se realmente o filme lembra tanto a peça ou se é a minha obsessão com o filme que me faz querer adaptar o mundo àquelas imagens. Nelas, dois amigos dançam com uma prostituta (Gena Rowlands), animados, felizes, até que (por volta do minuto 3:30), ela começa a dar mais atenção a um deles, e o outro começa a se sentir excluído, começa a cantar mais alto, espernear, fazendo de tudo pra chamar a atenção. Até que a mulher percebe, se aproxima dele, tentando fazer um carinho, o abraça, e então ele pergunta, seco, "quanto você cobra?". Patético, constrangedor, e lindamente humano. Como Dostoievski. Como Pinter.

sábado, 14 de maio de 2011

Otto, na ideologia de lagostas

Nossos ensaios estão parados por 4 dias, mas é por um excelente motivo: nosso querido Otto está em Cannes, apresentando seu filme "O Abismo Prateado", de Karim Aïnouz!
O engraçado é que o personagem dele na peça tem o seguinte solilóquio:

"É, mas você está aqui, conosco. Ele está lá, sozinho, vagando pelo terraço, pra baixo e pra cima, esperando por uma lancha lotada de gente glamurosa, pelo menos. Gente glamurosa do Mediterrâneo. Esperando por tudo aquilo, um tipo de elegância que nós nem conhecemos, uma coisa meio barriga tanquinho na Cote d'Azur que nós não temos a menor idéia do que se trata, uma ideologia de lagostas e de molho de lagostas que não temos a mais puta idéia, as pernas mais compridas do mundo, as vozes mais extraordinariamente suaves. Posso até ouvir agora. (...)"

... ou seja, não há melhor lugar no mundo para o Otto estar agora! É um laboratório maravilhoso, falei com no chat agora e desde que chegou lá tudo lhe faz lembrar "ideologia de lagostas"... É muito estranho ser latinoamericano num lugar desses, plebeu no meio da corte. BMW inacreditáveis, pernas mais compridas do mundo, gente glamurosa do Mediterrâneo. Sensação bizarra. Exatamente o que o personagem do Otto descreve na peça.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Sobre Gerhard Richter


Faz anos que sou obcecado pela obra do Gerhard Richter, pintor alemão.
Por algum motivo pensei nele quase automaticamente quando decidi dirigir essa peça. Talvez pela correlação quase óbvia entre um certo grupo de pinturas dele e esse texto do Pinter:
Gerhard Richter tem uma pesquisa de pinturas a óleo retratando fotografias, muitas vezes em preto-e-branco, pinturas que sempre são trabalhadas com um método de raspagem, resultando em imagens que são ao mesmo tempo figurativas (e às vezes até hiper-realistas), mas sempre geram um desconforto, uma sensação que vai além da representação da imagem, talvez pela estranha nostalgia causada por uma pintura em preto-e-branco (não é uma foto), talvez por essa desfiguração esteticamente bela e perigosa da raspagem. Nostalgia, estranheza, transfiguração da imagem figurativa de uma foto numa coisa outra...
Já o Pinter, nesse texto, gera personagens que só falam sobre o passado o tempo todo, mas estão sempre falando do presente. E sempre através de uma lógica interna não-realista, mas que se parece com o real. Parece que são apenas um casal e uma amiga conversando, como numa situação real absolutamente normal. Até que essa lógica vai se distorcendo aos poucos. Se raspando, se tornando uma outra coisa...

Sobre ritmos, pausas e o ator consciente do que faz

Seguindo um pensamento sobre o trabalho do ator num texto como o do Pinter, em que a lógica narrativa clássica é trocada por uma lógica muito mais complexa – e às vezes aparentemente ilógica (apenas aparentemente).

Tenho me deparado agora com uma questão que sempre me deixou muito curioso, a do ritmo na fala do ator. No drama realista (como a maior parte dos filmes em que trabalhei) o ritmo das falas é quase esquecido, ninguém pensa nele – tudo se adequa à lógica do real, da aparência da realidade, e só haverá um ritmo trabalhado, preciso, se os personagens tiverem esse ímpeto interno. Já na comédia, o ritmo é imprescindível como ferramenta do ator e do diretor. Sem um bom ritmo nenhuma piada se sustenta. Mas embora Pinter não seja exatamente comédia (é engraçadíssimo diversas vezes, mas por motivos sombrios), tenho percebido a cada dia o quanto essa noção é importante pro jogo cênico criado por ele, o quanto torna a cena mais redonda, completa, gostosa de brincar. Não só o ritmo entre as falas, réplicas e tréplicas entre 2 ou 3 atores, mas também os ritmos internos de falas mais longas e solilóquios. Pinter trabalha muito, nos solilóquios, com uma pontuação muito precisa, e com um fluxo de imagens vertiginoso, muito parecido com as correntes de pensamento de Joyce, Proust, Faulkner. Só que nas correntes de pensamento (streams of consciousness) desses caras a corrente é interna, a consciência do personagem correndo solta, os pensamentos dele - o famigerado “monólogo interior”. Nesse texto do Pinter (como sempre nas peças dele aliás), tudo o que é dito será dito visando um objetivo, geralmente o de prevalecer sobre alguém de alguma maneira. Então esses solilóquios têm um formato de corrente de pensamento porém não uma corrente interna, subjetiva, mas sim uma torrente, pra fora, objetiva e direcionada a um fim – sem por isso deixar de ser totalmente subjetiva na sua criação de imagens. Um pouco como se o personagem começasse a falar sem parar tudo o que viesse na cabeça, de uma vomitada só, de maneira confusa e subjetiva, mas conscientemente fazendo isso para demonstrar o quanto é especial, mais especial do que o outro, aquele fraco...
E é inevitável que essa pontuação frenética, que gera uma experiência singular na leitura destes textos (basta lembrar do sufocante e maravilhoso final do Ulysses, o longo monólogo interior de Molly Bloom, sem um ponto sequer), suponha também uma forma singular na fala do ator. Por isso a busca por um ritmo vertiginoso (palavra muito diferente de “rápido”, “acelerado”, etc – como na música) nestes solilóquios, numa forma de não deixar pausas entre as frases, para que não haja espaço para o outro entrar, numa opressão verborrágica.

Por outro lado, há também as famosas pausas pinterescas. Os textos dele são salpicados de pausas, e elas evidentemente não estão ali para criar tensão dramática, como numa lógica realista. Depois de diversas leituras do texto, começamos a sentir que essas pausas estabelecem quebras de unidade dentro das situações estabelecidas. Como se a cada pausa houvesse uma potencialização para um novo ataque. Começamos a chamar esses “momentos entre-pausas” de rounds, e acabamos criando, a partir de uma sugestão da Cristina que se empolgou com essa lógica, exercícios para tentar dar conta das conseqüências de cada pausa no desenrolar da cena. E as conseqüências são interessantíssimas, pois realmente parece que a junção das pausas e do ritmo vertiginoso potencializa absurdamente o jogo cênico.

Bom, tudo muito bonito, muito legal, muito empolgado com essa pesquisa, PORÉM, é claro, ao tomar esse rumo com os atores, num primeiro momento, toda a construção de imagens do próprio texto se perde. Num primeiro momento, parece que eles esquecem do que estão falando, e só reproduzem aquelas palavras naquele ritmo. Inevitável, pois é uma busca até certo ponto formalista, a de um ritmo. Será? O mais difícil, tenho encontrado, tanto para os atores entenderem (entender organicamente, compreender, tornar parte do fluxo) quanto pra mim explicar, facilitar, dirigir, é a idéia de que esse ritmo é na verdade orgânico. Não é um formalismo, é orgânico, pois participa desse “objetivo” do personagem, o de oprimir o outro através não só do que ele diz, mas também do como diz: linguagem, imagens e ritmo. Isso me parece absolutamente imprescindível de ser compreendido pelo ator, pois senão o que acontece, se ele simplesmente “obedecer” a essa direção, é que ele vai se tornar um robô que reproduz aquele texto (já de por si bastante ilógico, aparentemente, mas não pode sê-lo para o ator) de uma forma ritmada que vai soar bonita, poética, mas totalmente desprovida de sentido.
Por isso a dúvida do melhor momento para se trazer essa questão para os atores. Se ela é trazida logo no início do processo, pode “formalizar” totalmente a atuação deles, que ficam mais preocupados com um ritmo imposto por mim do que com o que realmente estão dizendo. Se chega muito no final, já estarão acostumados a um formato mais desritmado, provavelmente vai ser muito difícil se adequar e o ritmo vai acabar se perdendo – o realismo de ritmo irregular vai prevalecer. Por isso tenho tentado que faça parte do processo de compreensão do texto, da situação. É o que estou tentando fazer, mas essas matemáticas são tão loucas quando falamos de processo artístico. Segue o instinto, filho, e vamos nessa...

Por outro lado, o risco, nessa forma de pensar essas opções formais como formas do personagem atingir seu objetivo, é o de tentar reduzir o texto do Pinter à lógica realista. Não o é, e por mais que se tente nunca o será. O que talvez seja preciso que fique claro para os atores é que não é exatamente uma decisão dos personagens, individualmente conscientes, esse ritmo – eles não decidem “ah, vou falar desse jeito” - mas sim a forma como eles se colocam no jogo. É a lógica do jogo cênico em si, pra além da logicazinha interna realista. Uma das formas deles tentarem ganhar o jogo – dentro e fora da lógica interna aos personagens. Assim, personagem e ator se confundem um pouco – o que parece se encaixar perfeitamente no texto do Pinter, onde ao mesmo tempo em que os personagens seguem uma lógica interna draconiana, o tempo todo há a impressão de que a qualquer momento um deles vai dar uma piscadinha para a platéia, revelando que tudo aquilo é um jogo, uma peça.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Sobre improvisos, tradições e quebras de tradições

Em todos os trabalhos que fiz em cinema, sempre me vi frente à textos, personagens e narrativas realistas. Para não dizer todos, tentei fazer um curta (Um Mar Qualquer) uma vez que não deu muito certo, mas cuja tentativa me interessa até hoje (ainda vou voltar nesse assunto aliás, me interessa muito). Todos meus outros 6 curtas, bem como as 3 peças curtas que dirigi, bem como os 3 longas em que fiz preparação de elenco, todos seguiam uma lógica do realismo, causal, concreta, pé-no-chão. Mas eu sempre fiquei incomodado com isso, em alguma instância. Não que considere menor o realismo, nem nenhum destes trabalhos. Mas sempre houve algo em Pinter, Beckett, Joyce ou Proust que me interessava muito mais.

Agora que me lancei na loucura de dirigir um Pinter, e com atores maravilhosamente inteligentes e disponíveis para o jogo (se não fossem eu estaria cometendo suicídio agora mesmo, em vez de estar tão instigado escrevendo sobre o processo, ou seja, como sempre disse, casting é quase tudo - quase, e já vou explicar porque), me vejo FINALMENTE, apenas agora, aos 30 anos, me enfrentando ao que sempre quis tentar enfrentar. Em "Um Mar Qualquer", o tal curta, tentei fazer isso, era um curta muito inspirado em Pinter, em que uma família comum de classe média carioca vivia situações de um realismo retorcido, como a filha mais velha (Bianca Comparato) assumir a função de empregada doméstica da casa, o pai (Herson Capri) ser totalmente ridicularizado pelo filho de 10 anos (Lucas Capri), ou a mãe (Susanna Krueger) falar tanto, mas tanto, que o pai tem um infarto e morre... Com o tempo entendi que, independentemente do roteiro do curta ser mais ou menos primário nessa tentativa de distorção, o fator mais importante para a impotência artística do filme foi a minha direção de atores. Os atores (que eram, também, inteligentes e disponíveis) simplesmente não tiveram nenhuma ajuda minha no sentido de tentar entender que lógica retorcida é essa afinal, essa que evidentemente não é a lógica realista, a qual estamos tão acostumados. Aquilo que eu já intuía ao escrever o roteiro era algo que eu não tinha a mais mínima ideia de como explicar, como proceder com os atores. Então simplesmente ficava pedindo a eles para que fossem "o mais natural possível". Eles confiaram em mim, e o filme está realmente muito natural, mas essa inépcia - da direção de atores, escolhas do diretor, não dos atores individualmente - enfraquece completamente o filme. A direção de atores despotencializou os atores.

Agora, 5 anos depois deste curta, depois de ter passado por muitos outros trabalhos, e com um texto MUITO mais interessante do que aquele meu roteiro, agora com o texto de um Harold Pinter, me vejo pela primeira vez com a possibilidade de tentar construir alguma coisa dessa ordem junto com os atores, não impondo a eles uma forma boba que não dá conta de nada, mas sim entrando junto com eles nessa lógica retorcida. (Sentimento de coração disparado, descobertas diárias, parece que absolutamente tudo o que já fiz até hoje é uma grande bobagem e meu deus como eu queria ter 20 anos porque perdi muito tempo antes de finalmente fazer o que, afinal, eu sempre soube que queria desde que, aos 19 anos, vi uma montagem de A Volta ao Lar em Londres... Mas enfim, ao mesmo tempo não, ao mesmo tempo a noção de que tudo isso é por tudo o que passei, os longas, trabalhar com o Kike Diaz, errar naquele curta, ficar mais velho, etc. De todos os modos, parece uma viagem meio sem volta).

O que temos feito, agora, é tentar encontrar esse texto, encontrar estes personagens, como sempre fiz em qualquer filme, mas ao mesmo tempo de uma forma completamente diferente. No texto existem 3 personagens, muito claros, muito bem definidos, a esposa Kate (Paula Braun), o marido Deeley (Otto Jr.) e a amiga da esposa, Anna (Cristina Flores). Os impulsos, vetores de força, objetivos, seja qual for o termo, aquilo que eles querem, a situação enfim, é muito clara também: Kate observa enquanto Anna e Deeley entram numa competição meio absurda por ela. Deeley tem ciúmes de Anna, Anna parece querer provar que a amizade delas é muito mais forte do que o casamento, e Kate observar, tentando dar conta de duas pessoas brigando por ela, tentando entender. Até que no final, Kate explode. Acumula, acumula e explode. Mas a forma com que as coisas acontecem, são ditas, tudo é de uma ambiguidade atroz, o que uma pessoa diz aqui pode ser desdito por ela mesma logo ali na frente, e a mesma estória que um conta pode ser usada pelo outro, logo depois, e recontada de forma totalmente diferente. E nenhuma das duas parece ser “a verdade”, parece não existir a verdade. Sem que sejam mentiras.

Uma coisa que sempre me incomodou no cinema em geral (e me incomoda na maior parte do cinema, por isso sempre brinquei que não gosto de cinema, gosto de Cassavetes, Bergman, Tarkovski e mais um ou outro que passou por ali) é que na maior parte dos filmes (e na verdade na maior parte das peças também, sejamos justos) os personagens são apenas aquilo ali mesmo. Apenas aquele recorte. Aquele cara acordou, pegou uma arma, saiu na rua, assaltou um banco, tal ou tal coisa acontece com ele, acaba o filme e aquele cara não existe, é só uma desculpa pra se fazer um filme. Nada a ver com Dostoievski. Raskolnikov não acaba quando vai pra Sibéria e se ajoelha arrependido aos pés de uma mulher. Raskolnikov é eterno porque é o ser humano. Não um ser humano apenas, particularzinho, com seus probleminhas tacanhos – o ser humano. A prostituta Jeannie de Gena Rowlands em Faces é a mulher, assim como a Mabel de Uma Mulher sob a Influência. É uma mulher apenas, mas a dimensão de depoimento sobre o ser humano que estes artistas (Dostoievski em um caso, o coletivo organizado por Cassavetes em outro) alcançam faz com que o simples, o uno, se torne universal. Apenas aquela pessoa ali, mas nela o universo.
(nota mental: Desconfie de personagens “complexos”. Geralmente eles são os mais rasos).

A tentativa que eu tenho feito nos filmes em que faço preparação de elenco ou nos meus curtas é a de pegar aquele personagem que, no roteiro, existe apenas entre 100 páginas, 2 meses de filmagem ou alguns dias, meses ou anos dentro da ficção, e estendê-lo, fazê-lo maior, com uma vida completa, cheia de situações, possibilidades e estórias para além do roteiro. Por isso sempre trabalhei com improvisações de situações que não estão no roteiro, mas que se relacionam com ele. Seguindo essa lógica, um filme em que um policial está deprimido em casa porque foi demitido da corporação pede uma improvisação em que o policial seja demitido, talvez outra em que ele conta isso pros amigos, talvez outra em que ele chega em casa e tem vergonha de contar pra filha - mesmo que estas cenas não existam no roteiro (exemplo tirado do filme "No Meu Lugar", do Eduardo Valente;  policial era o Márcio Vito, a filha a Nívea Magno). Em outro filme, o pai do protagonista morreu recentemente. Improvisação quase óbvia, mas extremamente eficaz: o dia em que o pai morreu. Digo a ele que estamos numa época em que o pai está vivo ainda, e crio um conflito para que ele e a mãe briguem. No meio de tudo, sem avisar, peço a outro ator para entrar e dar a notícia da morte do pai. No calor da discussão, sem estarem preparados, os dois sofrem uma catarse impressionante. Se estabelece ali para o protagonista o buraco que é a morte do pai, que vai gerar toda sua jornada no filme (o filme é A Coleção Invisível, de Bernard Attal, e o ator Vladimir Brichta). Em outro ainda, a relação de uma jovem médica e seu namorado precisa de uma superficialidade pois a questão é justamente que ela não consegue nunca se apaixonar por ele. Parto pra jogos, brincadeiras, mas nunca uma improvisação muito profunda - a não ser para a cena final, em que ela deixa ele, e para a qual fazemos uma preparação diferenciada (Hermila Guedes e João Miguel no filme de Marcelo Gomes provisoriamente intitulado Era Uma Vez Verônica).

Só que este procedimento, bastante "stanislavskiano", e que eu chamo de "criar memórias emotivas do personagem" - do personagem, não do ator - não dá conta de uma peça de Harold Pinter ou de Samuel Beckett. O problema então, a questão, o desafio, é o de se procurar uma forma de trabalhar o ator na dramaturgia contemporânea. (E não me venham dizer que Beckett e Pinter não são contemporâneos, que nada até hoje foi feito mais contemporâneo do que eles. Quero ver. Lagarce, Novarina, Koltés, Jon Fosse, todos eles, a mesma galera, farinha do mesmo saco). Essa questão me foi colocada pela primeira vez em 2000, pelo diretor Rubén Szchumaker, argentino genial que deu um curso em Madrid que se intitulava "O Ator na Dramaturgia Contemporânea". Eu tinha 19 anos, foi logo depois de ver Pinter pela primeira vez, fiquei fascinado. O curso foi incrível e tudo o que ele disse ficou guardado até hoje, apesar da minha memória péssima. Ele falava da necessidade do ator compreender o texto em toda sua lógica não-realista, mas que essa compreensão não podia ser apenas intelectual, mas também orgânica. Tão simples, tão preciso.

Quando voltei pro Brasil percebi que existem, pelo menos no Rio de Janeiro, muitas pessoas interessadas nessa mesma questão, e por isso corri atrás de trabalhar com o Kike. Ele sem dúvida é um ponto de referência para essa pergunta. Trabalhando com ele e observando a cena à nossa volta percebi uma coisa curiosa. Vi, e continuo vendo, muitas peças e muitos colegas tentando lidar com essa questão sem muitas ferramentas para isso, e muitas vezes dá a impressão que artistas comprometidos e bem-intencionados dão tiro na água porque não sabiam muito onde mirar. Do mesmo jeito que eu atirei na água com o meu curta. Textos contemporâneos dirigidos sem nenhuma direção de atores, ou com direções de trânsito (aqui faz mais rápido, aqui grita), sem nenhum resultado. Só fui começar a entender isso vendo o Kike trabalhar no In On It. Trabalhar do jeito dele, errático, inseguro, sempre consciente de que pode estar tudo errado e disposto a jogar tudo fora - absolutamente genial. 

O Kike tem um jeito bem particular de trabalhar, trouxe o famigerado Viewpoints quando voltou de Nova York, mas seja lá o que for o Viewpoints com certeza não é algo que ele segue, como um método, mas sim uma ferramenta que ele utiliza para brincar, experimentar coisas, quando ele quiser está lá, mas não é um "método" (essa palavra, aliás, deveria dar calafrios a qualquer um). Logo que comecei a trabalhar com ele, conversamos sobre uma coisa que me deixava um pouco tenso. Eu via (e continuo vendo, aliás) muitos atores e diretores estudando Viewpoints (que, simplificando muito, por mim que nunca estudei a fundo o assunto, é uma técnica que parece visar, em última instância, fornecer ao ator uma liberdade total para usar seu corpo e sua voz no espaço e na relação com os outros - e aqui a palavra fornecer é importante, porque liberdade é a coisa mais difícil de se alcançar), usando Viewpoints como forma básica de criação dramatúrgica, e tudo isso me parecia muito interessante... Mas eu via (e continuo vendo) também uma tentativa de colocar isso num lugar de formação de ator, anterior a qualquer outra formação. Peças em que o viewpoints parecia ser o espetáculo em si, não o caminho para um resultado outro, e jovens que, fascinados com o Viewpoints e com o que entendem que seja o teatro contemporâneo, começam a achar que personagem não existe, narrativa não existe, nada existe, nada é nada. O não-lugar, o não-ator. (Nada a ver com o que o próprio Kike faz, diga-se de passagem). Pode ser interessante essa investigação, principalmente do ponto de vista do encontro do teatro com as artes plásticas. Confesso que conheço menos do que gostaria. De todos os modos, se em algum momento vai me interessar esse não-ator, essa não-dramaturgia, não sei, mas estou aberto e curioso, sempre. Por hora, a investigação que me interessa é a do ator na dramaturgia contemporânea. Porque a dramaturgia que resulta dos procedimentos que o Kike Diaz faz sobre Hamlet ou A Gaivota não me parece tão distante, do ponto de vista do trabalho do ator, da dramaturgia de um Pinter, ou Lagarce. Em última instância, me parecem apenas formas distintas de lidar com o problema da pós-modernidade. Como disse o Umberto Eco:

“A resposta pós-moderna ao moderno consiste em reconhecer que o passado, já que não pode realmente ser destruído, pois sua destruição leva ao silêncio, precisa ser revisitado: mas com ironia, não inocentemente. Eu penso na atitude pós-moderna como a de um homem que ama uma mulher muito culta e sabe que ele não pode dizer a ela, “te amo enlouquecidamente”, porque ele sabe que ela sabe (e que ela sabe que ele sabe) que essas palavras já foram escritas por Barbara Cartland. Ainda assim, há uma solução. Ele pode dizer, “Como Barbara Cartland diria, 'te amo enlouquecidamente'”.

Ou seja, essa consciência de que estamos aqui, fazendo isso. Estamos em cena, fazendo uma peça de teatro, não vamos enganar você, não vamos fingir que é de verdade. Mas ao mesmo tempo é. É mentira, mas ainda assim dói. É ficção, mas ainda assim é verdade. Ficção é verdade. Se eu digo, está dito, não tem jeito, passa a ser verdade. Como a questão da obra de arte, "o que é e o que não é arte? / Bom, se eu penduro na parede e digo que é arte, então é. Se é bom, aí já é outra coisa..."
Uma peça que colocou essa questão de maneira brilhante foi uma que vi recentemente, "Ninguém Falou que Seria Fácil", do Felipe Rocha (peça que está em cartaz agora, junto de um monólogo dele também genial). Em cena, ele, Renato Linhares e Stella Rabelo parecem se dividir entre quem faz qual personagem a cada momento, entre um pai uma mãe e uma filha. Um momento que ficou marcado pra mim, o momento em que Felipe pede à Stella, posso fazer a filha?, e Stella nega, repetidamente, ele insiste, insiste, até que começa a chorar, e segue insistindo cada vez mais choroso e infantil - vai se tornando a criança enquanto pede pra fazer a criança. O próprio impulso de querer fazer a criança é o que o torna criança. Esse procedimento é de uma lucidez que me impressiona. Tão simples, tão preciso.

Do texto da peça Outros Tempos, do Pinter:
ANNA: Há coisas que eu lembro que talvez nunca aconteceram, mas como eu me lembro delas, elas passam a ter acontecido.

Os três personagens da peça estabelecem essa disputa estranha em que estórias do passado são contadas, mas elas nunca parecem se referir realmente ao passado – elas sempre são usadas como vetores para atingir o outro, para estabelecer uma posição, para provar ali no coletivo que eu sou o que tem o melhor passado. Ou seja, uma peça que só fala do passado, sem nunca falar do passado. Eles inventam e reinventam essas estórias, as tornam absurdas, impossíveis, poéticas, trágicas. Tudo de acordo com o que querem alcançar:

KATE:
Me lembro de você estendida, morta. Você não sabia que eu estava olhando. Me curvei sobre você. Seu rosto estava sujo. Você estava estendida, morta, com a cara toda rabiscada de terra, várias frases sérias, mas a terra ainda estava úmida, escorrendo pelo seu rosto, descendo até o pescoço. Seus lençóis estavam imaculados. Fiquei contente. Me deixaria triste ver o seu cadáver em cima de lençóis sujos. Teria sido deselegante. Quero dizer, no que me dizia respeito. No que dizia respeito ao meu quarto. Afinal você estava morta no meu quarto. Quando você acordou meus olhos estavam sobre você, fixos em você.

Essa passagem por exemplo é absolutamente inviável do ponto de vista realista (você estava morta, depois você acordou?), e por sê-lo, acontece uma coisa engraçada. A grande maioria das pessoas que lê o texto ou vê a peça (digo por diversos textos que li sobre a peça ou por nós mesmos, que a estamos montando agora) sempre, num primeiro momento, se apega a esse texto especificamente para tentar entender a complexidade da peça, pensando por exemplo que talvez Anna esteja morta, Kate a tenha matado, e matado a Deeley também e assim Anna e Deeley aqui seriam fantasmas e tudo se passaria na cabeça doentia de Kate. Bom, é uma possibilidade? Muito pouco interessante me parece, e não vejo nada no texto que indique isso. Me parece que há, ainda, em 2011, uma tendência nossa a tentar explicar tudo pela lógica narrativa clássica. Tudo isso ser o delírio de uma mente doentia é a lógica narrativa clássica. É um pouco como a dificuldade que algumas pessoas ainda tem com a arte abstrata, ou até mesmo moderna (com a contemporânea, nem se fala).

Investigando com os atores, chegamos a alguns pontos que nos firmaram com o pé no chão:
  • Existem 3 personagens, claramente definidos, e os impulsos entre eles são bem definidos.
  • A lógica com a qual eles vão lidar com esses impulsos não é muito clara, mas evidentemente lida com o passado, sempre estão contando o que aconteceu no passado (vi você, você fez, ele veio, nós fomos). É através da distorção dessas estórias que eles vão se relacionar.
  • Tudo é um jogo entre eles – mas isso não quer dizer que eles não se comprometam, que não estejam íntegros nesse jogo, eles se importam, são afetados pelo jogo. No final, segundo as rubricas do Pinter, Deeley chora aos soluços e Anna tenta ir embora e não consegue...

Bom, uma vez que é evidente no texto, por exemplo, que o ciúmes que Deeley sente de Anna é o que o move a chafurdar em incontáveis tentativas de prevalecer sobre ela contando estórias de como ele é um homem especial (por exemplo quando ele, de repente, diz que fez uma filmagem na Sicília e que seu nome é Orson Welles), não faria sentido deixar de trabalhar, em alguma instância, a relação entre esses personagens de uma forma, digamos, “stanislavskiana” - relação de casal, ciúmes de homem, amigas que tem uma amizade mais sexualizada do que o normal, etc, tudo parece precisar ser construído com os atores, para que exista, para que esse ciúmes do Deeley ressoe como verdadeiro, para que ele se comprometa. Porém, não adiantaria simplesmente inventar uma estória pregressa para os atores e pedir para eles “acreditarem” em seus personagens através de improvisações do passado, como faço no cinema realista. Então o quê? Chegamos essa semana a uma coisa interessante. A ideia de improvisação dentro dos limites que a própria peça impõe. Adoro trabalhar com limites, sempre gostei. Improvisamos situações do passado de Anna e Kate, mas Deeley tinha que estar presente, aqui, agora. É o passado mas não é, é o presente. É como se elas “fizessem” o passado para ele ver. Ao mesmo tempo, improvisações do subtexto (sim, outra palavra que assusta a alguns, como se fosse antiquada), para que se entenda emocionalmente o que diabos Anna quer aqui, porque Deeley sente tantos ciúmes, porque Kate fica quieta e não diz nada. E ao mesmo tempo, o tempo todo, improvisando a ideia de que eles estão inventando todas estas estórias, para atingir ao outro e o seu próprio objetivo. O que faz com que a lógica interna não seja realista. Me veio à cabeça, no final de um ensaio, um termo absurdo para tentar definir o que estamos tentando fazer: “Stanislavski cubista”. Comprometido com uma lógica interna de personagens, mas a cada minuto o ponto de vista dessa lógica interna pode mudar completamente. Como um jogo mesmo. Mas o mais importante, e talvez o mais difícil, é a consciência, o tempo todo, de que estamos criando essas estórias aqui, agora, durante o espetáculo. Talvez Stanislavski cubista presentificado?... enfins... besteira dar nomes pomposos, mas acho que o que quero dizer é que acho muito bobo fingir que personagem não existe quando existe, confundir ir além de Stanislavski com fingir que ele simplesmente não existiu...

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Começar

Começo de ensaio é sempre assim né. Em 3 dias parece que já estamos ensaiando há anos. Milhões de descobertas e redescobertas, tudo parece uma coisa e no minuto seguinte exatamente o contrário. Pelo menos é o que acontece com um texto rico como esse do Pinter. É de uma complexidade atroz, é de uma simplicidade atroz. Não termina de me surpreender.
Basicamente, o seguinte: temos 3 personagens, Deeley, Anna e Kate. Deeley e Kate são um casal. Anna é a amiga que vem visitar. Ela é amiga de Kate, não conhece Deeley, não vê Kate há 20 anos. Foram amigas quando jovens, em Londres, e tiveram uma amizade muito próxima. Depois de um jantar, os 3 conversam sobre o passado, sobre o passado de Kate: como ela conheceu Deeley, o que ela costumava fazer quando morava com Anna... Isso é a base, a superfície, mas o que a peça é realmente, o que acontece realmente na peça... é um pouco mais complexo. Deeley parece ter ciúmes de Anna, antes mesmo dela chegar, perguntando a Kate exaustivamente por detalhes sobre essa amizade e dizendo que vai ficar interessadíssimo nesse encontro. Quando Anna entra em cena (na verdade ela já estava em cena, mas não na cena, estava de costas na janela sem participar da conversa, como se não estivesse ali), ela e Deeley começam uma disputa curiosa, como se quisessem disputar quem teve um passado mais incrível com Kate, contando situações que passaram com Kate que nunca parecem muito reais, sempre um pouco inventadas. Como nesse soliloquio de Deeley:

DEELEY: O que aconteceu comigo foi o seguinte. Eu caí num cineminha pulguento pra ver Um Homem a Mais. Uma tarde de verão maldita, andando sem rumo. Eu lembro que pensei que tinha algo familiar naquele bairro e de repente me lembrei que foi naquele mesmíssimo bairro que meu pai me deu meu primeiro triciclo, na verdade o único triciclo que eu tive na vida. Enfim, tinha ali a loja de bicicletas e tinha esse cineminha pulguento passando Um Homem a Mais e na entrada estavam duas lanterninhas e uma delas estava mexendo nos próprios peitos e a outra estava dizendo “puta safada” e a que mexia nos peitos dizia “hummm” e sorria para a colega com uma expressão muito sensual, então eu avancei no meio daquela tarde insuportavelmente quente no meio do nada e fiquei assistindo Um Homem a Mais e achei que o Robert Newton era fantástico. E eu ainda acho que ele era fantástico. E eu seria capaz de cometer um assassinato por ele, ainda hoje. E só tinha mais uma pessoa no cinema, uma única pessoa na imensidão do cinema vazio, e lá está ela. E lá estava ela, bem apagada, bem imóvel, sentada eu acho bem no centro da platéia. Eu estava num canto e fiquei por ali. E eu saí quando filme acabou, e percebi, apesar do James Mason estar morto, que a primeira lanterninha parecia estar completamente exausta, suada, e eu fiquei parado um tempinho no sol, pensando em qualquer coisa eu acho, até que essa moça saiu e eu dei uma olhada nela e falei o Robert Newton não é fantástico, e ela disse qualquer coisa, só Deus sabe, mas ela me olhou, e eu pensei Jesus é isso, peguei um peixe grande, essa é sangue azul, e quando já estávamos sentados no café ela olhou pra xícara de chá depois olhou para mim e disse que ela achava o Robert Newton inesquecível. De modo que foi o Robert Newton quem nos juntou, e só o Robert Newton pode nos separar.

...os detalhes desnecessários como a loja de triciclos e as duas lanterninhas, a obsessão bizarra com o Robert Newton, diversas coisas podem levar a pensar, numa primeira leitura, que a peça é simplesmente um pouco absurda. Mas nada parece ser gratuito, quando se presta suficiente atenção. Deeley está claramente se sentindo ameaçado por Anna, essa mulher que apareceu de repente com um passado suspeito com sua mulher - Anna tem, ao longo da peça, diversos momentos que claramente indicam que a relação delas era, não abertamente sexual, mas estranhamente simbiótica:

ANNA: Mas dessa noite em diante ela passou a insistir, de vez em quando, que eu usasse as calcinhas dela - ela tinha mais do que eu, e muito mais variadas - e cada vez que me propunha isso ela ruborizava, mas a proposta era feita, ainda assim. E quando havia alguma coisa pra contar a ela, quando eu voltava, qualquer coisa interessante pra contar, eu contava a ela.

Então a situação é bem clara: Deeley se sente ameaçado por Anna, Anna até certo ponto tenta subjugar Deeley, os dois disputam sutilmente por Kate, que fica a noite toda praticamente em silêncio, observando, falando pouco, muito pouco. Só no final Kate irá concluir essa disputa. Antes disso ela só observa, e fica o desafio de entender, junto com a atriz, o que exatamente está passando pela cabeça dela - Kate gosta dessa disputa, se sente lisonjeada? Detesta, fica sufocada? Que diabos passa pela cabeça dela? Talvez seja um dos personagens mais interessantes que eu já trabalhei, justamente pelo inacessível. Mas aparentemente só poderemos entender melhor o que se passa com ela depois que conseguirmos construir essa disputa entre os outros dois. Tem tempo.

O próprio Pinter disse uma vez que seu teatro nunca foi absurdo. Nunca achei que fosse tampouco. Mas OK, a situação é clara: dois disputam, uma observa pra ver quem ganha. Só isso, do começo ao fim de uma hora de peça. Porém, há esses detalhes bizarros, essa forma de colocar as coisas meio stream of consciousness (me lembrei muito do Ulysses do James Joyce, mas não sei se faz sentido levar pro ensaio, pode pirar ainda mais a cabeça dos meus atores, coitados!), e até mesmo as evidentes contradições: esse mesmo solilóquio do Deeley depois será "contestado" com outro da Anna, lá na frente, em que ela conta de um dia em que ela e Kate foram juntas ver o filme “Um Homem a Mais”, num bairro afastado, num cinema vazio... ou seja, exatamente a mesma situação contada de dois pontos de vista não apenas diferentes, mas conflitantes. Hoje eu fiquei muito feliz porque no ensaio apareceu na minha cabeça uma ideia que não só parece fazer todo o sentido, mas ainda torna o jogo cênico muito mais interessante. Tentando simplificar ao máximo: eles estão inventando essas estórias. Estão pegando coisas concretas que aconteceram no passado e simplesmente "improvisando" em cima delas, um free style em cima do passado deles mesmos. Como dizem, a História é contada pelos vencedores. Aqui cada um dos dois está tentando impor sua versão do passado, sua História. Parece tão simples que me sinto estúpido de não ter pensado nisso antes.

O que eu mais gosto dessa ideia é que presentifica totalmente a atuação deles. Sempre soube que essa peça não era sobre o passado, apesar de se chamar OLD TIMES e só se falar sobre o passado. Por isso traduzi o título como OUTROS TEMPOS, achei que Velhos Tempos não seria suficiente para dar conta, os termos em inglês têm ressonancias diferentes que em português. Mas mesmo sabendo que não era sobre o passado, mas sim sobre o presente, sobre o que acontece aqui agora, essa disputa, esse ciúme, ainda assim era uma incognita esse absurdo dos dialogos, esse clima Ulysses em que a lógica do que se diz parece ser psicológica, e com certeza não é realista. A ideia de que eles estejam “inventando” as estórias não dá conta completamente desse “realismo psicológico” pinteriano (ele mesmo usou essa expressão para falar de sua obra), pois num realismo concreto o outro questionaria a afirmação “falsa”, abriria-se o jogo, o que aqui jamais acontece. Mas se é um jogo complexo, as regras do jogo são complexas mas as cartas são claramente essas: jogamos com o passado, pode-se inventar um passado, alterar o passado, modificar o que o outro inventou. Aconteça o que acontecer, nunca ficará claro que quer que seja a verdade. Se é que ela existe.





terça-feira, 3 de maio de 2011

O que já aconteceu

Como eu quero usar isso aqui ao longo do processo, como um diário de bordo, mas só criei o blog agora que já começaram os ensaios, um rápido up-to-date do que já aconteceu:

Sempre fui apaixonado por Pinter, desde os 19 anos quando vi uma montagem incrível de Homecoming em Londres. Foi o cara que me fez querer dirigir teatro, assim como foi o Cassavetes quem me fez querer dirigir cinema. Só que nos últimos anos eu tenho sido meio relapso com o teatro - apesar de ter estudado mais teatro que qualquer outra coisa, o cinema e a televisão me sugaram quase todo o tempo ultimamente, fora uma ou outra eventual escapada como assistente de direção, tradutor e até ator. Fazendo assistência pro Enrique Diaz na peça In On It, reencontrei a vontade não só de dirigir, mas de dirigir um Pinter - Kike se referia bastante ao Pinter nos ensaios. Ao mesmo tempo, nos últimos 3 longas em que trabalhei fiz preparação de elenco - função nova, curiosa, criada no cinema brasileiro, que me proporcionou a possibilidade de me dedicar integralmente por várias semanas àquilo que mais gosto de fazer, dirigir atores. Tudo isso junto trouxe de volta a coceira de dirigir teatro, e de cara pensei no Pinter. Eu e a Cristina estávamos querendo fazer uma peça juntos há tempos, eu falava sem parar do Pinter, e foi ela quem um dia apareceu com uma xerox de uma peça quase desconhecida por aqui. Era Old Times. Lemos, nos apaixonamos, e começamos a buscar os parceiros. Encontramos Otto Jr., ator maravilhoso e querido, depois Paula Braun, idem ibidem, atores inteligentes que não reduzem um texto como esse, ao contrário, o elevam. Fizemos algumas leituras preliminares, pra todo o mundo se conhecer, se encontrar. A leitura com o Domingos e o PC foi ótima, muito bom ter o iluminador e o diretor de arte presentes desde o começo do processo, presentes, opinantes, participativos. Não consigo entender esses iluminadores que só aparecem no ensaio na semana da estréia, eles acham que entenderam alguma coisa da peça?... Enfim, um luxo a equipe, alto nível de discussão.

O desafio inicial num Pinter sempre é o de tentar entender, o texto é ao mesmo tempo complexo e simplérrimo: um casal espera uma antiga amiga dela para jantar. Ele pergunta sobre essa amiga, essa visita que a mulher não vê há muito tempo. Eram muito amigas, em Londres, quando mais jovens. A amiga chega, e o que vemos ao longo do espetáculo é a longa conversa dos três após o jantar. Bastante simples aparentemente, fora o fato de que essa conversa começa a ficar um pouco estranha - a visita e o marido começam a entrar numa espécie de disputa, de regras indefinidas, para ver quem teve um passado mais interessante com Kate, a esposa. A amiga fala de como elas eram felizes quando moravam juntas, o marido conta o primeiro encontro, a primeira transa... A Kate se torna uma espécie de troféu, e os dois parecem disputá-la de uma forma clara mas não explícita. Aliás, cada vez me parece mais perfeita essa equação para essa peça: claro porém não explícito. Seria estúpido tornar o Pinter hermético, ele nunca o foi. Tem que ser claro. Mas ao mesmo tempo, faz parte da lógica do texto uma ambiguidade atroz - tudo pode ser uma outra coisa completamente diferente. Porque a estória que um ou outro personagem conta pode ser verdade e pode não ser, pode ser apenas uma forma de tentar impor a sua verdade, a sua versão da estória. Tanto é assim que eles se contradizem o tempo todo. Por isso a necessidade de estudar esse texto em profundidade, antes de começar a inventar qualquer coisa. Mas estudar fazendo, com os atores, pra não ficar cerebral demais... desafio, desafio desafio

A peça

Pra começar, do que se trata: criei esse blog para tentar colocar em palavras algo do nosso processo de criação na montagem do espetáculo OUTROS TEMPOS (Old Times), de Harold Pinter.

A peça, inédita no Rio de Janeiro (não consegui confirmar se já foi montada em São Paulo, mas parece que sim), era uma das preferidas do próprio Pinter, que dirigiu uma montagem e atuou em outra, ao lado de Liv Ulmann (imagina isso, Pinter e Liv Ulmann juntos em cena... delirante).

Agora que começaram os ensaios (começaram ontem), tenho tido vontade de escrever sobre o que temos feito, pensado, para botar no papel, olhar para aquilo e ajudar a repensar, refazer. Gosto de fazer isso de vez em quando, ajuda a pensar. Por algum motivo, pela primeira vez resolvi fazer isso publicamente.

Enfim, quem quiser acessar, vou tentar manter um compromisso interno de postar regularmente.

Serviço:

OUTROS TEMPOS, de Harold Pinter
Tradução e Direção: Pedro Freire
Elenco: Cristina Flores, Otto Jr. e Paula Braun
Iluminação: Paulo César Medeiros
Direção de Arte: Domingos Alcântara
Produção: Bianca de Felipes, Tárik Puggina, Jurubeba Produções

ESTRÉIA dia 1o de Julho de 2011, no teatro SESC Copacabana (Arena).