terça-feira, 31 de maio de 2011

Sobre a criação de imagens

No texto do Pinter há momentos, recorrentes, em que um dos personagens “ataca” os outros com falas enormes, que convencionamos chamar solilóquios (embora não sejam falas para eles mesmos, mas sim direcionadas para os outros). Como são grandes e possuem uma lógica interna, se tornam “estudáveis” independentemente.

Nesses solilóquios, geralmente, uma quantidade abissal de imagens é evocada, num ritmo vertiginoso. Dois exemplos diferentes abaixo:

DEELEY:
(…) Mas aí uma multidão de homens me cercou, me exigiram minha opinião sobre a morte, ou sobre a China, ou sobre o que fosse, e eles não me largavam e estavam todos curvados em cima de mim, com os hálitos fedorentos os dentes quebrados os cabelos nos narizes e a China e a morte e os rabos deles nos braços da minha poltrona e eu fui forçado a me levantar e abrir caminho no meio deles, todos me seguindo com ferocidade, como se eu fosse o motivo de toda a discussão, olhando pra trás através da fumaça, correndo até a mesa com toalha de linóleo para pegar mais um garrafa de cerveja, olhando pra trás através da fumaça, vendo de relance duas garotas no sofá, uma delas você, as cabeças juntas, cochichando, já não conseguindo ver mais nada, já não conseguindo ver meias ou coxas, e aí vocês tinham ido embora. Voltei pra perto do sofá. Não tinha ninguém nele. Fiquei contemplando no sofá as marcas de quatro nádegas. Duas delas eram tuas.


KATE:
(…) Me lembro de você estendida, morta. Você não sabia que eu estava olhando. Me curvei sobre você. Seu rosto estava sujo. Você estava estendida, morta, com a cara toda rabiscada de terra, várias frases sérias, mas a terra ainda estava úmida, escorrendo pelo seu rosto, descendo até o pescoço. Seus lençóis estavam imaculados. Fiquei contente. Me deixaria triste ver o seu cadáver em cima de lençóis sujos. Teria sido deselegante. Quero dizer, no que me dizia respeito. No que dizia respeito ao meu quarto. Afinal você estava morta no meu quarto. Quando você acordou meus olhos estavam sobre você, fixos em você. Você tentou aplicar o meu truquinho, um dos meus truques que você tinha copiado, meu sorrizinho lento, meu sorrizinho tímido e lento, meu jeito de inclinar a cabeça de lado, de deixar os olhos semicerrados, esse jeitinho que nós duas conhecíamos tão bem, mas não funcionou, o sorriso quebrou o barro nos cantos da sua boca e endureceu. Você endureceu sorrindo.


No estudo desses solilóquios algumas questões aparecem que são bem interessantes para se pensar a direção de atores numa dramaturgia como a do Pinter:

- Compreensão da lógica do texto
Não é possível compreender esse texto numa lógica realista. O solilóquio de Kate, por exemplo, não pode ser entendido literalmente, evidentemente (“você estava morta / quando você acordou” etc), tem um sentido mais poético, talvez o de relatar o final de um amor. Já o de Deeley é um relato de uma situação que provavelmente nunca aconteceu, talvez a criação de uma história de suposta intimidade, para colocar a mulher (neste momento vítima, em outros algoz) numa situação de desconforto. Se tentarmos enfrentar estes textos numa lógica realista, a própria lógica começa a ruir em pouco tempo. Então há que se tentar entender essa poética, essa invenção de história. Ainda assim, defendo que, pelo menos na dramaturgia do Pinter, existe uma lógica humana, interna a cada “personagem” (nome gasto e que não dá conta da questão, talvez melhor “potência”, “vetor de força”, enfim). Essa lógica interna é a que faz com que faça todo o sentido esse homem, no segundo ato, criar essa história estapafúrdia sobre uma noite numa festa – pois está reagindo às situações do primeiro ato. Essa lógica é tão clara no texto quanto desconcertante, pois num primeiro momento o texto do Pinter parece nos pedir uma lógica de causa e consequencia, mesmo sendo tão poético e pouco realista. Aos poucos estamos entendendo que lógica de causa e consequencia não é exatamente o caso, não dá conta, é pouco potente pra entender o jogo cênico. Mais do que causa e consequencia, o que parece haver é uma acumulação, numa espiral em que, na realidade, cada “vetor” parece jogar o mesmo jogo até o final da peça, em que aquela mesma potência do início está agora no seu volume máximo e, por isso mesmo, explode (ou afunda, dependendo do ponto de vista). Esses “solilóquios” seriam então momentos pontuais nessa espiral, momentos em que um dos vetores acumulou potência e precisa liberá-la de algum modo. Esse entendimento não-realista é essencial para o ator, senão a lógica realista vai levá-lo a decisões que são tiros no pé: nos dois exemplos de texto, se no do homem o ator decidir que a história é verdadeira, isso despotencializaria totalmente a cena, pois é bem diferente inventar uma história sobre alguém descaradamente do que lembrar a ela algo que realmente aconteceu – uma lida com o presente, outra com o passado. Já no da mulher, imagine dizer esse texto tentando dar conta de um assassinato... nada mais longe do que está realmente acontecendo.

- Trabalho de criação de imagens
Me parece essencial fazer um trabalho, nestes textos extremamente evocadores de imagens, fazer um trabalho individual com cada ator de criação das imagens. Esse é um trabalho chato, difícil e pouco usado talvez, mas eu acredito muito nele. Consiste, simplesmente, em estudar o texto imaginando uma imagem para cada pequena unidade do texto. Hoje no ensaio dei um exemplo que funciona para mim:
ANNA: (…) nós éramos jovens é claro, mas que resistência, e trabalhar de manhã, e depois um concerto, ou a ópera, ou o balé, naquela noite, você não esqueceu? e depois no andar de cima do ônibus atravessando a Kensington High Street, e os motoristas dos ônibus, e depois correndo pra procurar os fósforos e acender o aquecimento e eu acho que ovos mexidos (...)
Nesse trecho por exemplo, Anna está evocando uma profusão de imagens de um passado em que ela e Kate foram muito amigas e vivam juntas pra lá e pra cá em Londres. Se eu me proponho a fazer o trabalho de imagens com esse texto, pegando por exemplo o pedacinho “e os motoristas dos ônibus” - pedaço que pode passar quase desapercebido numa abordagem do texto como fluxo, sem estudar pedaço-a-pedaço -, eu começo a imaginar um ônibus, um específico, dentro dele um motorista específico, um engraçado, figura, que parece meu tio, com um bigodão, e ele conta uma piada, e a Kate está rindo dessa piada, e nessa imagem “os motoristas dos ônubus” se torna ao mesmo tempo aquele motorista, aquela piada, aquela noite, aquele sorriso, e ao mesmo tempo o fato de que eu e Kate compartilhamos um gosto por conversar com os motoristas dos ônibus, é algo que temos na nossa história pessoal. Claro que, ao dizer “os motoristas dos ônibus”, nada disso precisa estar presente, nem nunca vai estar. O trabalho é de criar o iceberg por baixo da ponta: agora eu sei porque eu estou dizendo “os motoristas dos ônibus”, sei internamente, sei do que estou falando – a coisa mais triste é ver um ator em cena que não sabe o que está dizendo. Mas até aqui nenhuma novidade, esse trabalho de imagens é antigo e já foi muito pensado e usado, e pode perfeitamente ser usado num texto absolutamente realista. Só que eu tenho cada vez mais sentido que ele é ainda mais eficiente num texto não-realista, pois se este exemplo que eu dei é bastante realista, o que dizer do texto da Kate, “você estava morta”? Quando se inventa uma história, o que se faz nada mais é do que exatamente esse trabalho, de criação de imagens. Então o trabalho serve especialmente quando essas imagens são evocadas. Quando Kate diz que a amiga estava morta, precisa de alguma imagem dela morta, e a questão passa a ser qual imagem será essa. Se apropriar do texto, fazer dele uma comunicação do ator, ajudar o ator a comunicar e não apenas reproduzir palavras. As improvisações ajudam exatamente nisso, pois ao improvisar o ator precisa inventar imagens o tempo todo, criar situação e imagens para seguir no jogo (isso nas boas improvisações, nas comprometidas, não as racionais e estéreis). Mas em textos como o do Pinter, muitas vezes é inviável abordar um soliloquio através de improvisação – pois é muito errático, ilógico, cheio de nuances. Então o trabalho de imagens se torna uma ferramenta essencial para o ator, pois é como se ele se permitisse “improvisar” cada pedacinho do texto em algum momento.

- Ritmo
Como já disse em post anterior, acho essencial o ritmo no trabalho de direção de atores, principalmente numa proposta não realista – se no realismo o ritmo ideal é errático, pois assim é como falamos no dia a dia, de forma desritmada, aqui o ritmo se torna parte essencial da própria lógica do texto. Se formos aos exemplos acima, tanto o solilóquio de Deeley quanto o de Anna apresentam um evidente ritmo vertiginoso de imagens: “...com os hálitos fedorentos os dentes quebrados os cabelos nos narizes e a China e a morte e os rabos deles nos braços da minha poltrona e eu fui forçado a me levantar e abrir caminho no meio deles”. Nenhuma vírgula, nenhum ponto. Não é possível passar por cima da pontuação num Pinter, assim como não é possível passar por cima das pausas. Elas fazem parte intrínseca da lógica interna ao texto, e ignorá-las significa fazer uma releitura, uma recriação do texto – nada contra, só não é o que estou me propondo aqui. Porém, se esse trabalho de ritmo é importante, ao mesmo tempo, como também já disse em post anterior, pode aprisionar totalmente os atores, que num primeiro momento sempre vão “mecanizar” suas falas ao tentar dar a elas um ritmo específico. A criação das imagens, espero, pode ajudar muito nesse caso.

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