quarta-feira, 4 de maio de 2011

Começar

Começo de ensaio é sempre assim né. Em 3 dias parece que já estamos ensaiando há anos. Milhões de descobertas e redescobertas, tudo parece uma coisa e no minuto seguinte exatamente o contrário. Pelo menos é o que acontece com um texto rico como esse do Pinter. É de uma complexidade atroz, é de uma simplicidade atroz. Não termina de me surpreender.
Basicamente, o seguinte: temos 3 personagens, Deeley, Anna e Kate. Deeley e Kate são um casal. Anna é a amiga que vem visitar. Ela é amiga de Kate, não conhece Deeley, não vê Kate há 20 anos. Foram amigas quando jovens, em Londres, e tiveram uma amizade muito próxima. Depois de um jantar, os 3 conversam sobre o passado, sobre o passado de Kate: como ela conheceu Deeley, o que ela costumava fazer quando morava com Anna... Isso é a base, a superfície, mas o que a peça é realmente, o que acontece realmente na peça... é um pouco mais complexo. Deeley parece ter ciúmes de Anna, antes mesmo dela chegar, perguntando a Kate exaustivamente por detalhes sobre essa amizade e dizendo que vai ficar interessadíssimo nesse encontro. Quando Anna entra em cena (na verdade ela já estava em cena, mas não na cena, estava de costas na janela sem participar da conversa, como se não estivesse ali), ela e Deeley começam uma disputa curiosa, como se quisessem disputar quem teve um passado mais incrível com Kate, contando situações que passaram com Kate que nunca parecem muito reais, sempre um pouco inventadas. Como nesse soliloquio de Deeley:

DEELEY: O que aconteceu comigo foi o seguinte. Eu caí num cineminha pulguento pra ver Um Homem a Mais. Uma tarde de verão maldita, andando sem rumo. Eu lembro que pensei que tinha algo familiar naquele bairro e de repente me lembrei que foi naquele mesmíssimo bairro que meu pai me deu meu primeiro triciclo, na verdade o único triciclo que eu tive na vida. Enfim, tinha ali a loja de bicicletas e tinha esse cineminha pulguento passando Um Homem a Mais e na entrada estavam duas lanterninhas e uma delas estava mexendo nos próprios peitos e a outra estava dizendo “puta safada” e a que mexia nos peitos dizia “hummm” e sorria para a colega com uma expressão muito sensual, então eu avancei no meio daquela tarde insuportavelmente quente no meio do nada e fiquei assistindo Um Homem a Mais e achei que o Robert Newton era fantástico. E eu ainda acho que ele era fantástico. E eu seria capaz de cometer um assassinato por ele, ainda hoje. E só tinha mais uma pessoa no cinema, uma única pessoa na imensidão do cinema vazio, e lá está ela. E lá estava ela, bem apagada, bem imóvel, sentada eu acho bem no centro da platéia. Eu estava num canto e fiquei por ali. E eu saí quando filme acabou, e percebi, apesar do James Mason estar morto, que a primeira lanterninha parecia estar completamente exausta, suada, e eu fiquei parado um tempinho no sol, pensando em qualquer coisa eu acho, até que essa moça saiu e eu dei uma olhada nela e falei o Robert Newton não é fantástico, e ela disse qualquer coisa, só Deus sabe, mas ela me olhou, e eu pensei Jesus é isso, peguei um peixe grande, essa é sangue azul, e quando já estávamos sentados no café ela olhou pra xícara de chá depois olhou para mim e disse que ela achava o Robert Newton inesquecível. De modo que foi o Robert Newton quem nos juntou, e só o Robert Newton pode nos separar.

...os detalhes desnecessários como a loja de triciclos e as duas lanterninhas, a obsessão bizarra com o Robert Newton, diversas coisas podem levar a pensar, numa primeira leitura, que a peça é simplesmente um pouco absurda. Mas nada parece ser gratuito, quando se presta suficiente atenção. Deeley está claramente se sentindo ameaçado por Anna, essa mulher que apareceu de repente com um passado suspeito com sua mulher - Anna tem, ao longo da peça, diversos momentos que claramente indicam que a relação delas era, não abertamente sexual, mas estranhamente simbiótica:

ANNA: Mas dessa noite em diante ela passou a insistir, de vez em quando, que eu usasse as calcinhas dela - ela tinha mais do que eu, e muito mais variadas - e cada vez que me propunha isso ela ruborizava, mas a proposta era feita, ainda assim. E quando havia alguma coisa pra contar a ela, quando eu voltava, qualquer coisa interessante pra contar, eu contava a ela.

Então a situação é bem clara: Deeley se sente ameaçado por Anna, Anna até certo ponto tenta subjugar Deeley, os dois disputam sutilmente por Kate, que fica a noite toda praticamente em silêncio, observando, falando pouco, muito pouco. Só no final Kate irá concluir essa disputa. Antes disso ela só observa, e fica o desafio de entender, junto com a atriz, o que exatamente está passando pela cabeça dela - Kate gosta dessa disputa, se sente lisonjeada? Detesta, fica sufocada? Que diabos passa pela cabeça dela? Talvez seja um dos personagens mais interessantes que eu já trabalhei, justamente pelo inacessível. Mas aparentemente só poderemos entender melhor o que se passa com ela depois que conseguirmos construir essa disputa entre os outros dois. Tem tempo.

O próprio Pinter disse uma vez que seu teatro nunca foi absurdo. Nunca achei que fosse tampouco. Mas OK, a situação é clara: dois disputam, uma observa pra ver quem ganha. Só isso, do começo ao fim de uma hora de peça. Porém, há esses detalhes bizarros, essa forma de colocar as coisas meio stream of consciousness (me lembrei muito do Ulysses do James Joyce, mas não sei se faz sentido levar pro ensaio, pode pirar ainda mais a cabeça dos meus atores, coitados!), e até mesmo as evidentes contradições: esse mesmo solilóquio do Deeley depois será "contestado" com outro da Anna, lá na frente, em que ela conta de um dia em que ela e Kate foram juntas ver o filme “Um Homem a Mais”, num bairro afastado, num cinema vazio... ou seja, exatamente a mesma situação contada de dois pontos de vista não apenas diferentes, mas conflitantes. Hoje eu fiquei muito feliz porque no ensaio apareceu na minha cabeça uma ideia que não só parece fazer todo o sentido, mas ainda torna o jogo cênico muito mais interessante. Tentando simplificar ao máximo: eles estão inventando essas estórias. Estão pegando coisas concretas que aconteceram no passado e simplesmente "improvisando" em cima delas, um free style em cima do passado deles mesmos. Como dizem, a História é contada pelos vencedores. Aqui cada um dos dois está tentando impor sua versão do passado, sua História. Parece tão simples que me sinto estúpido de não ter pensado nisso antes.

O que eu mais gosto dessa ideia é que presentifica totalmente a atuação deles. Sempre soube que essa peça não era sobre o passado, apesar de se chamar OLD TIMES e só se falar sobre o passado. Por isso traduzi o título como OUTROS TEMPOS, achei que Velhos Tempos não seria suficiente para dar conta, os termos em inglês têm ressonancias diferentes que em português. Mas mesmo sabendo que não era sobre o passado, mas sim sobre o presente, sobre o que acontece aqui agora, essa disputa, esse ciúme, ainda assim era uma incognita esse absurdo dos dialogos, esse clima Ulysses em que a lógica do que se diz parece ser psicológica, e com certeza não é realista. A ideia de que eles estejam “inventando” as estórias não dá conta completamente desse “realismo psicológico” pinteriano (ele mesmo usou essa expressão para falar de sua obra), pois num realismo concreto o outro questionaria a afirmação “falsa”, abriria-se o jogo, o que aqui jamais acontece. Mas se é um jogo complexo, as regras do jogo são complexas mas as cartas são claramente essas: jogamos com o passado, pode-se inventar um passado, alterar o passado, modificar o que o outro inventou. Aconteça o que acontecer, nunca ficará claro que quer que seja a verdade. Se é que ela existe.





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