sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Sobre Kate e os ritmos da peça

Tem uma coisa muito boa de voltar em cartaz que é o tempo que passa e deixa as ideias assentarem na cabeça, sedimentarem, e quando a gente volta na sala de ensaio (além de relembrar o texto temos que re-encontrar toda a mise en scene para italiano), revê aquilo tudo com olhos novos, purificados da loucura que foi a estréia, a pressão, a expectativa... E aí dá pra fazer aqueles ajustes pequenos mas importantíssimos, coisas que sempre me incomodaram mas nunca tinha entendido exatamente porquê.

Dentre vários detalhes que não cabem aqui, uma coisa que me veio ontem no ensaio é um desenho narrativo que essa peça tem, como todas as peças do Pinter. É estranho falar de narrativa num autor em que quase nada "acontece", tudo o que acontece são pessoas conversando numa sala. Mas a narrativa interior, o desenvolvimento da situação entre esses personagens é claro, e fortíssimo. Assim sendo, se numa peça de "eventos" o diretor precisa dar uma atenção especial à diferença de textura, ritmo, intensidade emocional, entre digamos uma cena de dois amantes conversando ou outra de festa animada com muitos atores e figurantes, aqui também há que pensar nessas diferenças, embora elas sejam muito mais sutis, e muitas vezes temos que tomar decisões sobre o texto sem que necessariamente ele nos indique um caminho.

De uma forma geral, o desenho que encontrei no Old Times é o seguinte: temos dois atos curtos. Ambos têm um desenho parecido: duas pessoas conversam, falando de uma terceira, que está fora de cena, mas prestes a entrar. A chegada da terceira pessoa irá desencadear uma série de situações emocionais nos outros dois, competições e agressões veladas, até chegar a um ponto, no final do ato, em que o pivô da briga (Kate) dá um basta na situação, de forma calma e definitiva. Se no primeiro ato começa a peça com Kate e Deeley falando de Anna que vai chegar, a presença dela na janela, de costas, ao mesmo tempo dentro e fora de cena, representa o fato de que ela já está lá, contida no ciúmes paranóico do Deeley, nas tentativas de lembrar para poder responder de Kate - presença em ausência. Já no ato 2, serão Deeley e Anna que ficarão sozinhos no quarto, falando de Kate, que toma banho através de uma porta cuja luz podemos ver, e cujo chuveiro escutamos - presença em ausência.

No ato 1, quando Anna chega, ela vai aos poucos gerando um ciúmes conscientemente) em Deeley, tentando mostrar ter mais intimidade com a esposa dele do que o próprio. Isso acontece numa narrativa espiral, em que começa aparentemente tudo bem mas vai ficando cada vez pior, até ficar insustentável. No final do ato, quando Deeley é grosseiro com a esposa, e esta decide se levantar, sentar ao lado da amiga e fazer perguntas absurda sobre a casa na Sicília, como "vocês têm pisos de mármore, vocês tomam bullshots vendo o por do sol?", ela está se aproximando da amiga o suficiente como para definir que nesta disputa a amiga ganhou - enquanto ela segue perguntando, o marido fica falando sozinho sobre seu emprego, e ninguém responde a ele. Uma vez que essa aproximação se dá entre as duas, e o homem fica finalmente "sobrando", a cena final do ato 1 é um momento em que Pinter se permite flertar com o absurdo, pois as duas amigas passam a falar como se estivessem no passado, quando eram amigas e tinham 20 anos, se questionando se vão ou não sair essa noite, se vão chamar algum rapaz para visitá-las - coisas que não fariam sentido com o marido ali presente e nos dias de hoje. Só que o marido está presente, e os dias são os de hoje, então se entende que é uma permissão que as próprias mulheres de 40 anos se deram de brincar de ter 20 anos e serem solteiras por alguns momentos - na frente do marido de Kate, humilhando o homem "a mais". Assim, e voltando a falar de ritmo, a peça começa com um ritmo mais tranquilo de receber uma visita, vai subindo num crescendo pois a amiga vai gerando uma tensão enorme no equilibrio de forças da casa, até que quando atinge seu ápice (as perguntas e o marido ignorado), desemboca num momento quase onírico, calmo, de ritmo lento, sem nenhuma urgência, condizente com duas amigas conversando despreocupadamente, com a estranheza desta aparente volta ao passado.

No ato 2, Deeley e Anna falam sobre Kate, que volta do banho cheia de mudanças: agora vem com um roupão, não está mais de vestido, se senta e diz tudo aquilo que ela gostaria de fazer, para onde gostaria de ir, para em longe daqui, e termina dizendo que a cidade grande (Londres) não tem nada bom. Ou seja, ela deixa claro pros dois que, entre escolher um ou o outro, ela prefere ficar sozinha. O que gera um desespero nos dois, que vão passar do ato de tentar agradá-la para passar a agredí-la, contando histórias íntimas de Kate. Até que chegam ao cúmulo em que Anna grita que conheceu Kate primeiro, quase infantil. e Deeley diz a Kate que ele e a amiga já haviam se conhecido antes, tinham até flertado - duas medidas extremas, elevação das aposta, o ritmo interno lá no alto. É então que Kate, o elemento da discórdia, resolve a situação com calma, tranquilidade, um tempo-ritmo baixo, dizendo que lembra de Anna estar morta, num monologo poético em que "estar morta" é evidentemente uma metáfora para, de alguma forma, nosso amor ter terminado, mas dito com muito elegância e de forma poética muito bem construida. Da mesma forma ela conta como tentou terminar com o marido mas não conseguiu, dizendo que tentou "sujar a cara dele de terra, mas ele não deixou. Em vez disso me propôs casamento e uma mudança de ambiente. Nada disso importava". Ou seja, no final de uma peça em que a disputa de Deeley e Anna pelo passado de Kate se dá ininterruptamente, a própria Kate, objeto do desejo dos dois, decide "matá-los", destruindo esse mesmo passado que foi a arma usada no duelo. Um assassinato calmo, tranquilo, sem pressa. E justamente por isso tão mais potente e destruidor do que os ataques histéricos, patéticos, constrangedores de Anna e Deeley ao longo da noite.

É importante pensar no personagem da Kate então. Se ela ficou a peça toda em silêncio pra só no final decapitar os dois, o que passava pela cabeça dela antes? Pensar que existiu uma relação entre essas duas amigas, muito forte, no passado, até que ponto não existe uma expectativa muito grande sobre o que essa mulher veio fazer aqui na minha casa hoje? O que que ela vai dizer, como ela é hoje em dia, que tipos de coisas ela aprendeu, se tornou mais sofisticada? Rica? Mora na Itália, nossa. Porque Kate ficou os ultimos 20 anos casada com um cineasta B, do tipo que faz uns filminhos documentais pra televisão, um cara que evidentemente gostaria de ser mais do que é na profissão - e chega a fingir que é. E Kate passou esses anos todos morando numa casa no campo, longe do agito da "londres maravilhosa dos nossos tempos". E parou de trabalhar, virou dona de casa, suas saídas se resumem a andar até o mar, "não tem muita gente, é uma praia comprida..." Ela não seria feliz em Londres ("não gosto destas arestas"), mas também não parece estar muito feliz aqui ("gostaria de ir pro oriente, ou um lugar assim, bem quente"). Ela parece se interessar pela vida da amiga hoje ("vocês têm pisos de mármore?"), mas logo se desinteressa quando Anna imperativamente diz que sair para o parque seria absurdo, impondo a Kate o que fazer naquela noite. Kate se interessa pelas pessoas, mas elas parecem não conseguir de forma alguma sair das suas individualidades tão falhas para simplesmente estar ao lado de Kate. Parecem não querer escutá-la e por isso ela não tem o que dizer. Ela tenta: "minha cabeça está aqui, atarraxada onde deve estar", mas eles seguem passando por cima dela o tempo todo. Ela precisa se colocar de alguma forma, e é o que acontece no final, depois de ter tentado dar várias indiretas, ela finalmente desiste de indicar o que pensa e percebe que aqueles dois não vão entender se ela não falar claro. Mas até que ponto também é a própria Kate que tinha dificuldade de falar aquelas coisas, por isso "enrolou", tergiversou, colocou de formas menos claras, por uma dificuldade interna de enfrentar a verdade que é que esse casamento já acabou há anos mas ela não teve coragem de fazer nada em relação a isso. E em relação à amiga também. Como é difícil dizer para um amigo que já foi muito querido, muito mesmo, há muitos anos, e agora voltou aqui pra te visitar e você tem que dizer para ele "olha acabou. já naquela época eu não gostava mais de você, foi um ótimo momento o que a gente deixou de se ver, foi o momento certo, ali acabou a amizade ok?"

Até que ponto essa dificuldade de lidar com essa noite é essencial para se pensar a Kate (que não pode ser apenas uma psicopata que passa a noite rindo dos dois babacas que tentam agradá-la), pra se encontrar em que lugar esse silêncio é falta de saber como lidar com sua situação, como dizer as coisas, será que é necessário mesmo dizer, putz eles estão forçando a barra vou ter que dizer, não tem mais jeito.
Porque existe a relação de 20 anos com esse marido, e qualquer relação de 20 anos, se termina, é uma morte em alguma instância. E existe esse amor do passado, Anna, a amiga cuja amizade flertava com a simbiose e a sexualidade, essa amiga que volta cobrando violentamente a mesma intimidade do passado, a mesma simbiose.
Desse ponto de vista, é como se Anna e Deeley quisessem que Kate os "matasse" no final, pois as investidas deles são menos sexuais ou românticas, mas muito mais neuróticas, e até paranóicas, não se estruturam sobre nada sólido, então pareceria que o final é até certo ponto tudo o que eles esperavam, o que eles intuíam ser a única possibilidade, mas lutavam contra ela, mesmo sabendo-a inevitável. Assim como Kate, que parece aguardar que os dois consigam convencê-la a não matá-los, mas observa-os fracassando até o fim, quando só lhe resta proceder. Trágico.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

VOLTAMOS EM CARTAZ! TEATRO DULCINA 16/09 a 25/09


Quem quiser convite é só mandar email para outrostempospinter@gmail.com
Depois de dois fins de semana no Dulcina, continuamos em cartaz no SERGIO PORTO, até final de outubro!

Agora além do nosso elenco Cristina Flores, Otto Jr. e Paula Braun, temos a presença especialíssima da MIWA YANAGIZAWA substituindo a Paula aos domingos.

Apareçam!

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

É mentira mas dói mas é mentira mas dói

Tenho pensado muito num ponto que me interessa, há algum tempo, mas que não sei até que ponto consegui trabalhar nessa peça. A ideia de se trazer para a cena a própria noção de que é uma cena, ou seja, de que é ficção. A consciência de que o que os atores estão fazendo é uma mentira. Porém, sem que essa consciência deixe de ter consequências, inclusive emocionais, para eles.

Não é nova essa ideia, boa parte do teatro contemporâneo passa por ela, se fala muito de desdramatização no cinema ou do teatro pós-dramático. Mas ainda são poucas as obras que vejo que tratam do assunto em profundidade (menos no cinema do que no teatro). O que mais vejo são atores ou diretores que assumem que o drama não está mais na moda e colocam em cena uma proposta de atuação desdramatizada, sem emoção, blasé; ou então os que se restringem ao bom e velho acreditar em tudo e fingir que não existe público (ou câmera). Me interessa pensar que podemos assumir, como atores, que estamos em cena, que é tudo mentira, uma brincadeira... e ainda assim sentir alguma emoção. Como numa equação que termina numa dízima infinita: é mentira, mas dói, mas é mentira, mas dói, mas é mentira, mas dói, mas é mentira... mas dói, ou me faz rir, ou me acelera o coração, ou...

Pensando aqui também que, embora raro, já tem gente bem interessante brincando disso no teatro. Já no cinema... talvez o "Jogo de Cena", do Coutinho, seja um dos únicos filmes que já vi que toque no assunto. Filme genial, aliás.

sábado, 30 de julho de 2011



Depois de um bom tempo sem postar por aqui, porque a peça entrou finalmente no vórtice final e me sugou totalmente, fiquei com vontade de voltar. E começo essa volta com as críticas! Sim, pois a peça estreou e ficou um mês em cartaz e já saiu, então tenho muita coisa pra comentar e pensar. Vou começar pela crítica que saiu hoje do Humberto Giancristofaro na (para mim) importantíssima revista eletrônica QUESTÃO DE CRÍTICA - importantíssima pois me parece ser uma resposta da minha geração à uma crítica antiquada e sem grandes pensamentos que, infelizmente, reina ainda nos nossos jornais impressos. Aliás, sempre achei a mesma coisa da REVISTA CINÉTICA, revista eletrônica de crítica cinematográfica que é muito parecida em termos de geração e tentativa de renovação do olhar. Curioso que ninguém até hoje tenha feito um link entre essas duas tão importantes revistas, talvez porque o pessoal de teatro e o de cinema no Rio de Janeiro sejam tão distantes, sabe-se lá por quê...

Enfim, sem mais delongas, aqui vai o link para a crítica:
http://www.questaodecritica.com.br/2011/07/no-silencio-a-voz-muda/

O Humberto acompanhou um pouco os ensaios e assistiu à peça umas três vezes antes de escrever a crítica - o que já demonstra, por si só, a diferença entre o interesse de formular um pensamento crítico aqui e em boa partes dos jornais por exemplo...

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Sobre a "presentificação"


Eu andava angustiado pela minha vontade (e inevitável dificuldade) de trabalhar, num texto em que os personagens estão sempre falando do passado, a ideia de que eles "presentificam" esses relatos do passado, ou seja, nunca falam realmente do passado, mas estão sempre criando essas imagens do passado para atingir algum objetivo - consciente ou inconsciente - aqui, no presente.

Essa semana a angústia finalmente deu frutos. O exercício mais simples, quase estúpido de tão simples, me veio no meio de um ensaio. Porque eu tinha passado a semana pensando na diferença, claríssima, entre os tons com que dizemos as coisas quando estamos lembrando e quando estamos afirmando. Quando lembramos, parece que a palavra vem lá do fundo da nuca, parece que nossos olhos estão virados para dentro, para as lembranças, para o passado. Já quando estamos afirmando, ou melhor ainda, inventando, nosso discurso se projeta pra frente, os olhos pra frente, ligados, conectados com o agora e não com o antes.

Por mais que tente explicar isso a um ator, não é fácil, apenas entendendo intelectualmente, executar o procedimento de "presentificar" solilóquios enormes que tratam constantemente do passado. Os atores escutavam minha ideia, entendiam, gostavam, se empolgavam, mas na hora de fazer a cena nada. O que fazer? Bom, a ideia mais simples e óbvia é comumente a que mais demora para aparecer: pedi para os atores reescreverem TODOS os seus solilóquios que falam do passado, alterando o tempo verbal do texto, do passado característico da lembrança narrada ao presente característico de algo criado agora. Estudar o texto assim, perceber na pele a diferença, adaptar essa sensação para o texto original. A mudança é clara e linda:

TEXTO ORIGINAL:
Aí entrou alguém pra te chamar, uma moça, uma amiga. Ela sentou no sofá com você, vocês conversaram e riram, sentadas juntas, eu me acomodei ainda mais baixo para mirar as duas, as coxas das duas, encostando e raspando uma na outra, você consciente, ela inconsciente. Mas aí uma multidão de homens me cercou, me exigiram minha opinião sobre a morte, ou sobre a China, ou sobre o que fosse, e eles não me largavam e estavam todos curvados em cima de mim, com os hálitos fedorentos os dentes quebrados os cabelos nos narizes e a China e a morte e os rabos deles nos braços da minha poltrona e eu fui forçado a me levantar e abrir caminho no meio deles, todos me seguindo com ferocidade (...)

TEXTO "PRESENTIFICADO":
Aí entra alguém pra te chamar, uma moça, uma amiga. Ela senta no sofá com você, vocês conversam e riem, sentadas juntas, eu me acomodo ainda mais baixo para mirar as duas, as coxas das duas, encostando e raspando uma na outra, você consciente, ela inconsciente. Mas aí uma multidão de homens me cerca, me exigem minha opinião sobre a morte, ou sobre a China, ou sobre o que fosse, e eles não me largam e estão todos curvados em cima de mim, com os hálitos fedorentos os dentes quebrados os cabelos nos narizes e a China e a morte e os rabos deles nos braços da minha poltrona e eu sou forçado a me levantar e abrir caminho no meio deles, todos me seguindo com ferocidade (...)

Por mais simples que seja, essa operação coloca a questão para o ator num patamar totalmente diferente. E parece perfeito como exercício num texto onde o passado é usado o tempo inteiro como arma, como forma de alcançar algum objetivo no presente, e em que, inclusive, ele é inventado o tempo todo, em que uma personagem diz "tem coisas que eu me lembro que não aconteceram, mas como eu me lembro elas passam a ter acontecido"...  

terça-feira, 31 de maio de 2011

Sobre a criação de imagens

No texto do Pinter há momentos, recorrentes, em que um dos personagens “ataca” os outros com falas enormes, que convencionamos chamar solilóquios (embora não sejam falas para eles mesmos, mas sim direcionadas para os outros). Como são grandes e possuem uma lógica interna, se tornam “estudáveis” independentemente.

Nesses solilóquios, geralmente, uma quantidade abissal de imagens é evocada, num ritmo vertiginoso. Dois exemplos diferentes abaixo:

DEELEY:
(…) Mas aí uma multidão de homens me cercou, me exigiram minha opinião sobre a morte, ou sobre a China, ou sobre o que fosse, e eles não me largavam e estavam todos curvados em cima de mim, com os hálitos fedorentos os dentes quebrados os cabelos nos narizes e a China e a morte e os rabos deles nos braços da minha poltrona e eu fui forçado a me levantar e abrir caminho no meio deles, todos me seguindo com ferocidade, como se eu fosse o motivo de toda a discussão, olhando pra trás através da fumaça, correndo até a mesa com toalha de linóleo para pegar mais um garrafa de cerveja, olhando pra trás através da fumaça, vendo de relance duas garotas no sofá, uma delas você, as cabeças juntas, cochichando, já não conseguindo ver mais nada, já não conseguindo ver meias ou coxas, e aí vocês tinham ido embora. Voltei pra perto do sofá. Não tinha ninguém nele. Fiquei contemplando no sofá as marcas de quatro nádegas. Duas delas eram tuas.


KATE:
(…) Me lembro de você estendida, morta. Você não sabia que eu estava olhando. Me curvei sobre você. Seu rosto estava sujo. Você estava estendida, morta, com a cara toda rabiscada de terra, várias frases sérias, mas a terra ainda estava úmida, escorrendo pelo seu rosto, descendo até o pescoço. Seus lençóis estavam imaculados. Fiquei contente. Me deixaria triste ver o seu cadáver em cima de lençóis sujos. Teria sido deselegante. Quero dizer, no que me dizia respeito. No que dizia respeito ao meu quarto. Afinal você estava morta no meu quarto. Quando você acordou meus olhos estavam sobre você, fixos em você. Você tentou aplicar o meu truquinho, um dos meus truques que você tinha copiado, meu sorrizinho lento, meu sorrizinho tímido e lento, meu jeito de inclinar a cabeça de lado, de deixar os olhos semicerrados, esse jeitinho que nós duas conhecíamos tão bem, mas não funcionou, o sorriso quebrou o barro nos cantos da sua boca e endureceu. Você endureceu sorrindo.


No estudo desses solilóquios algumas questões aparecem que são bem interessantes para se pensar a direção de atores numa dramaturgia como a do Pinter:

- Compreensão da lógica do texto
Não é possível compreender esse texto numa lógica realista. O solilóquio de Kate, por exemplo, não pode ser entendido literalmente, evidentemente (“você estava morta / quando você acordou” etc), tem um sentido mais poético, talvez o de relatar o final de um amor. Já o de Deeley é um relato de uma situação que provavelmente nunca aconteceu, talvez a criação de uma história de suposta intimidade, para colocar a mulher (neste momento vítima, em outros algoz) numa situação de desconforto. Se tentarmos enfrentar estes textos numa lógica realista, a própria lógica começa a ruir em pouco tempo. Então há que se tentar entender essa poética, essa invenção de história. Ainda assim, defendo que, pelo menos na dramaturgia do Pinter, existe uma lógica humana, interna a cada “personagem” (nome gasto e que não dá conta da questão, talvez melhor “potência”, “vetor de força”, enfim). Essa lógica interna é a que faz com que faça todo o sentido esse homem, no segundo ato, criar essa história estapafúrdia sobre uma noite numa festa – pois está reagindo às situações do primeiro ato. Essa lógica é tão clara no texto quanto desconcertante, pois num primeiro momento o texto do Pinter parece nos pedir uma lógica de causa e consequencia, mesmo sendo tão poético e pouco realista. Aos poucos estamos entendendo que lógica de causa e consequencia não é exatamente o caso, não dá conta, é pouco potente pra entender o jogo cênico. Mais do que causa e consequencia, o que parece haver é uma acumulação, numa espiral em que, na realidade, cada “vetor” parece jogar o mesmo jogo até o final da peça, em que aquela mesma potência do início está agora no seu volume máximo e, por isso mesmo, explode (ou afunda, dependendo do ponto de vista). Esses “solilóquios” seriam então momentos pontuais nessa espiral, momentos em que um dos vetores acumulou potência e precisa liberá-la de algum modo. Esse entendimento não-realista é essencial para o ator, senão a lógica realista vai levá-lo a decisões que são tiros no pé: nos dois exemplos de texto, se no do homem o ator decidir que a história é verdadeira, isso despotencializaria totalmente a cena, pois é bem diferente inventar uma história sobre alguém descaradamente do que lembrar a ela algo que realmente aconteceu – uma lida com o presente, outra com o passado. Já no da mulher, imagine dizer esse texto tentando dar conta de um assassinato... nada mais longe do que está realmente acontecendo.

- Trabalho de criação de imagens
Me parece essencial fazer um trabalho, nestes textos extremamente evocadores de imagens, fazer um trabalho individual com cada ator de criação das imagens. Esse é um trabalho chato, difícil e pouco usado talvez, mas eu acredito muito nele. Consiste, simplesmente, em estudar o texto imaginando uma imagem para cada pequena unidade do texto. Hoje no ensaio dei um exemplo que funciona para mim:
ANNA: (…) nós éramos jovens é claro, mas que resistência, e trabalhar de manhã, e depois um concerto, ou a ópera, ou o balé, naquela noite, você não esqueceu? e depois no andar de cima do ônibus atravessando a Kensington High Street, e os motoristas dos ônibus, e depois correndo pra procurar os fósforos e acender o aquecimento e eu acho que ovos mexidos (...)
Nesse trecho por exemplo, Anna está evocando uma profusão de imagens de um passado em que ela e Kate foram muito amigas e vivam juntas pra lá e pra cá em Londres. Se eu me proponho a fazer o trabalho de imagens com esse texto, pegando por exemplo o pedacinho “e os motoristas dos ônibus” - pedaço que pode passar quase desapercebido numa abordagem do texto como fluxo, sem estudar pedaço-a-pedaço -, eu começo a imaginar um ônibus, um específico, dentro dele um motorista específico, um engraçado, figura, que parece meu tio, com um bigodão, e ele conta uma piada, e a Kate está rindo dessa piada, e nessa imagem “os motoristas dos ônubus” se torna ao mesmo tempo aquele motorista, aquela piada, aquela noite, aquele sorriso, e ao mesmo tempo o fato de que eu e Kate compartilhamos um gosto por conversar com os motoristas dos ônibus, é algo que temos na nossa história pessoal. Claro que, ao dizer “os motoristas dos ônibus”, nada disso precisa estar presente, nem nunca vai estar. O trabalho é de criar o iceberg por baixo da ponta: agora eu sei porque eu estou dizendo “os motoristas dos ônibus”, sei internamente, sei do que estou falando – a coisa mais triste é ver um ator em cena que não sabe o que está dizendo. Mas até aqui nenhuma novidade, esse trabalho de imagens é antigo e já foi muito pensado e usado, e pode perfeitamente ser usado num texto absolutamente realista. Só que eu tenho cada vez mais sentido que ele é ainda mais eficiente num texto não-realista, pois se este exemplo que eu dei é bastante realista, o que dizer do texto da Kate, “você estava morta”? Quando se inventa uma história, o que se faz nada mais é do que exatamente esse trabalho, de criação de imagens. Então o trabalho serve especialmente quando essas imagens são evocadas. Quando Kate diz que a amiga estava morta, precisa de alguma imagem dela morta, e a questão passa a ser qual imagem será essa. Se apropriar do texto, fazer dele uma comunicação do ator, ajudar o ator a comunicar e não apenas reproduzir palavras. As improvisações ajudam exatamente nisso, pois ao improvisar o ator precisa inventar imagens o tempo todo, criar situação e imagens para seguir no jogo (isso nas boas improvisações, nas comprometidas, não as racionais e estéreis). Mas em textos como o do Pinter, muitas vezes é inviável abordar um soliloquio através de improvisação – pois é muito errático, ilógico, cheio de nuances. Então o trabalho de imagens se torna uma ferramenta essencial para o ator, pois é como se ele se permitisse “improvisar” cada pedacinho do texto em algum momento.

- Ritmo
Como já disse em post anterior, acho essencial o ritmo no trabalho de direção de atores, principalmente numa proposta não realista – se no realismo o ritmo ideal é errático, pois assim é como falamos no dia a dia, de forma desritmada, aqui o ritmo se torna parte essencial da própria lógica do texto. Se formos aos exemplos acima, tanto o solilóquio de Deeley quanto o de Anna apresentam um evidente ritmo vertiginoso de imagens: “...com os hálitos fedorentos os dentes quebrados os cabelos nos narizes e a China e a morte e os rabos deles nos braços da minha poltrona e eu fui forçado a me levantar e abrir caminho no meio deles”. Nenhuma vírgula, nenhum ponto. Não é possível passar por cima da pontuação num Pinter, assim como não é possível passar por cima das pausas. Elas fazem parte intrínseca da lógica interna ao texto, e ignorá-las significa fazer uma releitura, uma recriação do texto – nada contra, só não é o que estou me propondo aqui. Porém, se esse trabalho de ritmo é importante, ao mesmo tempo, como também já disse em post anterior, pode aprisionar totalmente os atores, que num primeiro momento sempre vão “mecanizar” suas falas ao tentar dar a elas um ritmo específico. A criação das imagens, espero, pode ajudar muito nesse caso.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Pinter e Cassavetes



Essa semana entramos numa parte do texto muito difícil, em que Anna e Deeley começam a competir por Kate cantando antigas canções, criando uma situação ao mesmo tempo constrangedora e engraçada. Pelo menos essa é a nossa concepção da cena, pois o Pinter só diz "Deeley (cantando)" e "Anna (cantando)", seguido da letra de uma música antiga. Mas analisando o texto e seguindo a mesma lógica de que eles estão sempre se bicando, competindo de formas diferentes pela atenção de Kate, chegamos a esse desenho, de que eles estão competindo pra ver quem lembra das canções antigas que Kate adora. Nosso desafio é criar na cena esse constrangimento: de repente, do nada, uma das pessoas na sala começa a cantar uma música, a outra interrompe com outra música, e os dois começam a competir pra ver quem canta a música que mais vai agradar à terceira... patético, constrangedor, e absolutamente humano. Impossível não lembrar dessa cena de FACES, de John Cassavetes, filme que já vi dezenas de vezes, literalmente - a ponto de me perguntar se realmente o filme lembra tanto a peça ou se é a minha obsessão com o filme que me faz querer adaptar o mundo àquelas imagens. Nelas, dois amigos dançam com uma prostituta (Gena Rowlands), animados, felizes, até que (por volta do minuto 3:30), ela começa a dar mais atenção a um deles, e o outro começa a se sentir excluído, começa a cantar mais alto, espernear, fazendo de tudo pra chamar a atenção. Até que a mulher percebe, se aproxima dele, tentando fazer um carinho, o abraça, e então ele pergunta, seco, "quanto você cobra?". Patético, constrangedor, e lindamente humano. Como Dostoievski. Como Pinter.