sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Sobre Kate e os ritmos da peça

Tem uma coisa muito boa de voltar em cartaz que é o tempo que passa e deixa as ideias assentarem na cabeça, sedimentarem, e quando a gente volta na sala de ensaio (além de relembrar o texto temos que re-encontrar toda a mise en scene para italiano), revê aquilo tudo com olhos novos, purificados da loucura que foi a estréia, a pressão, a expectativa... E aí dá pra fazer aqueles ajustes pequenos mas importantíssimos, coisas que sempre me incomodaram mas nunca tinha entendido exatamente porquê.

Dentre vários detalhes que não cabem aqui, uma coisa que me veio ontem no ensaio é um desenho narrativo que essa peça tem, como todas as peças do Pinter. É estranho falar de narrativa num autor em que quase nada "acontece", tudo o que acontece são pessoas conversando numa sala. Mas a narrativa interior, o desenvolvimento da situação entre esses personagens é claro, e fortíssimo. Assim sendo, se numa peça de "eventos" o diretor precisa dar uma atenção especial à diferença de textura, ritmo, intensidade emocional, entre digamos uma cena de dois amantes conversando ou outra de festa animada com muitos atores e figurantes, aqui também há que pensar nessas diferenças, embora elas sejam muito mais sutis, e muitas vezes temos que tomar decisões sobre o texto sem que necessariamente ele nos indique um caminho.

De uma forma geral, o desenho que encontrei no Old Times é o seguinte: temos dois atos curtos. Ambos têm um desenho parecido: duas pessoas conversam, falando de uma terceira, que está fora de cena, mas prestes a entrar. A chegada da terceira pessoa irá desencadear uma série de situações emocionais nos outros dois, competições e agressões veladas, até chegar a um ponto, no final do ato, em que o pivô da briga (Kate) dá um basta na situação, de forma calma e definitiva. Se no primeiro ato começa a peça com Kate e Deeley falando de Anna que vai chegar, a presença dela na janela, de costas, ao mesmo tempo dentro e fora de cena, representa o fato de que ela já está lá, contida no ciúmes paranóico do Deeley, nas tentativas de lembrar para poder responder de Kate - presença em ausência. Já no ato 2, serão Deeley e Anna que ficarão sozinhos no quarto, falando de Kate, que toma banho através de uma porta cuja luz podemos ver, e cujo chuveiro escutamos - presença em ausência.

No ato 1, quando Anna chega, ela vai aos poucos gerando um ciúmes conscientemente) em Deeley, tentando mostrar ter mais intimidade com a esposa dele do que o próprio. Isso acontece numa narrativa espiral, em que começa aparentemente tudo bem mas vai ficando cada vez pior, até ficar insustentável. No final do ato, quando Deeley é grosseiro com a esposa, e esta decide se levantar, sentar ao lado da amiga e fazer perguntas absurda sobre a casa na Sicília, como "vocês têm pisos de mármore, vocês tomam bullshots vendo o por do sol?", ela está se aproximando da amiga o suficiente como para definir que nesta disputa a amiga ganhou - enquanto ela segue perguntando, o marido fica falando sozinho sobre seu emprego, e ninguém responde a ele. Uma vez que essa aproximação se dá entre as duas, e o homem fica finalmente "sobrando", a cena final do ato 1 é um momento em que Pinter se permite flertar com o absurdo, pois as duas amigas passam a falar como se estivessem no passado, quando eram amigas e tinham 20 anos, se questionando se vão ou não sair essa noite, se vão chamar algum rapaz para visitá-las - coisas que não fariam sentido com o marido ali presente e nos dias de hoje. Só que o marido está presente, e os dias são os de hoje, então se entende que é uma permissão que as próprias mulheres de 40 anos se deram de brincar de ter 20 anos e serem solteiras por alguns momentos - na frente do marido de Kate, humilhando o homem "a mais". Assim, e voltando a falar de ritmo, a peça começa com um ritmo mais tranquilo de receber uma visita, vai subindo num crescendo pois a amiga vai gerando uma tensão enorme no equilibrio de forças da casa, até que quando atinge seu ápice (as perguntas e o marido ignorado), desemboca num momento quase onírico, calmo, de ritmo lento, sem nenhuma urgência, condizente com duas amigas conversando despreocupadamente, com a estranheza desta aparente volta ao passado.

No ato 2, Deeley e Anna falam sobre Kate, que volta do banho cheia de mudanças: agora vem com um roupão, não está mais de vestido, se senta e diz tudo aquilo que ela gostaria de fazer, para onde gostaria de ir, para em longe daqui, e termina dizendo que a cidade grande (Londres) não tem nada bom. Ou seja, ela deixa claro pros dois que, entre escolher um ou o outro, ela prefere ficar sozinha. O que gera um desespero nos dois, que vão passar do ato de tentar agradá-la para passar a agredí-la, contando histórias íntimas de Kate. Até que chegam ao cúmulo em que Anna grita que conheceu Kate primeiro, quase infantil. e Deeley diz a Kate que ele e a amiga já haviam se conhecido antes, tinham até flertado - duas medidas extremas, elevação das aposta, o ritmo interno lá no alto. É então que Kate, o elemento da discórdia, resolve a situação com calma, tranquilidade, um tempo-ritmo baixo, dizendo que lembra de Anna estar morta, num monologo poético em que "estar morta" é evidentemente uma metáfora para, de alguma forma, nosso amor ter terminado, mas dito com muito elegância e de forma poética muito bem construida. Da mesma forma ela conta como tentou terminar com o marido mas não conseguiu, dizendo que tentou "sujar a cara dele de terra, mas ele não deixou. Em vez disso me propôs casamento e uma mudança de ambiente. Nada disso importava". Ou seja, no final de uma peça em que a disputa de Deeley e Anna pelo passado de Kate se dá ininterruptamente, a própria Kate, objeto do desejo dos dois, decide "matá-los", destruindo esse mesmo passado que foi a arma usada no duelo. Um assassinato calmo, tranquilo, sem pressa. E justamente por isso tão mais potente e destruidor do que os ataques histéricos, patéticos, constrangedores de Anna e Deeley ao longo da noite.

É importante pensar no personagem da Kate então. Se ela ficou a peça toda em silêncio pra só no final decapitar os dois, o que passava pela cabeça dela antes? Pensar que existiu uma relação entre essas duas amigas, muito forte, no passado, até que ponto não existe uma expectativa muito grande sobre o que essa mulher veio fazer aqui na minha casa hoje? O que que ela vai dizer, como ela é hoje em dia, que tipos de coisas ela aprendeu, se tornou mais sofisticada? Rica? Mora na Itália, nossa. Porque Kate ficou os ultimos 20 anos casada com um cineasta B, do tipo que faz uns filminhos documentais pra televisão, um cara que evidentemente gostaria de ser mais do que é na profissão - e chega a fingir que é. E Kate passou esses anos todos morando numa casa no campo, longe do agito da "londres maravilhosa dos nossos tempos". E parou de trabalhar, virou dona de casa, suas saídas se resumem a andar até o mar, "não tem muita gente, é uma praia comprida..." Ela não seria feliz em Londres ("não gosto destas arestas"), mas também não parece estar muito feliz aqui ("gostaria de ir pro oriente, ou um lugar assim, bem quente"). Ela parece se interessar pela vida da amiga hoje ("vocês têm pisos de mármore?"), mas logo se desinteressa quando Anna imperativamente diz que sair para o parque seria absurdo, impondo a Kate o que fazer naquela noite. Kate se interessa pelas pessoas, mas elas parecem não conseguir de forma alguma sair das suas individualidades tão falhas para simplesmente estar ao lado de Kate. Parecem não querer escutá-la e por isso ela não tem o que dizer. Ela tenta: "minha cabeça está aqui, atarraxada onde deve estar", mas eles seguem passando por cima dela o tempo todo. Ela precisa se colocar de alguma forma, e é o que acontece no final, depois de ter tentado dar várias indiretas, ela finalmente desiste de indicar o que pensa e percebe que aqueles dois não vão entender se ela não falar claro. Mas até que ponto também é a própria Kate que tinha dificuldade de falar aquelas coisas, por isso "enrolou", tergiversou, colocou de formas menos claras, por uma dificuldade interna de enfrentar a verdade que é que esse casamento já acabou há anos mas ela não teve coragem de fazer nada em relação a isso. E em relação à amiga também. Como é difícil dizer para um amigo que já foi muito querido, muito mesmo, há muitos anos, e agora voltou aqui pra te visitar e você tem que dizer para ele "olha acabou. já naquela época eu não gostava mais de você, foi um ótimo momento o que a gente deixou de se ver, foi o momento certo, ali acabou a amizade ok?"

Até que ponto essa dificuldade de lidar com essa noite é essencial para se pensar a Kate (que não pode ser apenas uma psicopata que passa a noite rindo dos dois babacas que tentam agradá-la), pra se encontrar em que lugar esse silêncio é falta de saber como lidar com sua situação, como dizer as coisas, será que é necessário mesmo dizer, putz eles estão forçando a barra vou ter que dizer, não tem mais jeito.
Porque existe a relação de 20 anos com esse marido, e qualquer relação de 20 anos, se termina, é uma morte em alguma instância. E existe esse amor do passado, Anna, a amiga cuja amizade flertava com a simbiose e a sexualidade, essa amiga que volta cobrando violentamente a mesma intimidade do passado, a mesma simbiose.
Desse ponto de vista, é como se Anna e Deeley quisessem que Kate os "matasse" no final, pois as investidas deles são menos sexuais ou românticas, mas muito mais neuróticas, e até paranóicas, não se estruturam sobre nada sólido, então pareceria que o final é até certo ponto tudo o que eles esperavam, o que eles intuíam ser a única possibilidade, mas lutavam contra ela, mesmo sabendo-a inevitável. Assim como Kate, que parece aguardar que os dois consigam convencê-la a não matá-los, mas observa-os fracassando até o fim, quando só lhe resta proceder. Trágico.

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